Comida na mesa e vírus lá fora: duas faces do comércio de alimentos
Delivery. Essa palavra que conhecemos há tantos anos se tornou algo essencial em tempos de Coronavírus.
Delivery. Essa palavra que conhecemos há tantos anos se tornou algo essencial em tempos de Coronavírus. Mais do que nunca o delivery tomou conta de nossas vidas e nos trouxe um alívio diante da hashtag #FicaEmCasa. Mas, muitas vezes, esquecemos que o delivery que vem até nós não tem como obedecer a essa tag.
Fica em casa. Esse talvez tenha sido o bordão mais utilizado na pandemia após o #UseMáscara. Nos alimentar ficou mais fácil a partir do momento em que não precisaríamos sair mais de casa para fazer compras e quando existia uma forma da comida e dos próprios alimentos chegarem até nós, sem esforço, um simples ato de scrolling e botões para confirmar o pedido.
A alimentação, como uma necessidade fisiológica básica do ser humano, pode ficar comprometida em tempos de pandemia, como reflexo do aumento do desemprego e da falta de renda. Muitos negócios que não conseguiram se adaptar ao delivery acabaram indo à falência. Por outro lado, muitos negócios que poderiam decolar apenas com a forma delivery foram impulsionados.
Em meio ao caos da pandemia, algumas pessoas viram a oportunidade de começar um novo negócio e utilizaram, para isso, as plataformas digitais, e não apenas canais de delivery de alimentos. Empreender no meio de uma pandemia no nível da pandemia do Covid-19 não é nada fácil, mas algumas pessoas conseguiram se sobressair neste feito.
Segundo o Jornal Contábil, durante o início da pandemia a compra de refeições ou alimentos por meio de aplicativos de delivery ou plataformas digitais cresceu em 149% em relação ao período anterior à pandemia. Hoje, segundo o Jornal da Universidade de São Paulo, esse crescimento atinge expressivos 975%.
Para entender melhor como foi para algumas pessoas começarem um negócio no meio da pandemia, conversei com um casal que decidiu empreender nesse período e que também trabalha com as entregas em delivery e aplicativos.
Na Zona Norte de São Paulo, no bairro Vila Iracema próximo a região da Brasilândia, o casal Ingryd Rodrigues e Rafael Araújo decidiu abrir uma empresa após terem seus empregos suspensos durante o início da pandemia. Rafael começou a trabalhar com entregas enquanto a Ingryd se manteve em casa. Dadas as circunstâncias, eles decidiram empreender e abrir um negócio.
“Eu nunca tive intenção de começar nada relacionado a alimentação, até porque eu não sou uma boa cozinheira. Mas aí, por uma semana inteira comecei a sonhar que estávamos fazendo geladinho gourmet”, disse Ingryd.
Após compartilhar sua ideia com o noivo eles, decidiram levá-la para frente. O início foi bem complicado, principalmente o marketing. Com ajuda da plataforma digital Instagram, o casal conseguiu fazer uma divulgação e criar uma conta só para a empresa em que fariam postagens e promoções. A empresa se chama Sobremesa Geladinha e tem deliciosos Geladinhos Gourmet de diversos sabores, além de uma linha de geladinhos saudáveis.
Perguntei para a Ingryd e para o Rafa como foi começar tudo isso na pandemia. Para eles foi bem complicado. Por ser um produto artesanal, eles queriam garantir a qualidade e o sabor acima de tudo. Para isso, eles decidiram trabalhar sempre com produtos de primeira linha e feitos com muito cuidado. Fazer um produto de qualidade demanda tempo e valor, por isso seria inviável cobrar um preço muito em conta para o cliente final. A empresa também não tinha um espaço físico e toda a família da Ingryd chegou a ajudar com as entregas.
Com a pandemia, o desemprego cresceu em função da crise econômica no Brasil, portanto o casal se deparou com a preocupação da falta de clientes ou demanda na empresa que haviam acabado de criar.
Apesar da preocupação, a realidade foi outra. O negócio decolou bem rápido e hoje eles se encontram dentro dos aplicativos de delivery. Ainda em 2020, o casal começou a atender empresas nas regiões da Pompéia e no Alto de Pinheiros.
Em tempos de lockdown, o casal se deparou com baixas em pedidos, mas mesmo assim conseguiram seguir com a empresa.
“Eu era recepcionista numa clínica de fisioterapia e eu pedi minha demissão. A clínica não podia me demitir. Havia um prazo estipulado pelo governo dentro do qual eu não poderia ter sido mandada embora. E eu escolhi continuar com a Sobremesa Geladinha. O que era minha renda extra acabou se tornando minha única fonte de renda”, diz Ingryd.
O casal também espera em breve poder ter um contato mais próximo com os clientes, podendo fornecer um melhor atendimento de forma presencial, o que gera uma maior fidelidade dos clientes e aumento de vendas.
Como Rafael também trabalhava com outras entregas além da empresa Sobremesa Geladinha, conversamos um pouco sobre a realidade dos entregadores de aplicativos de delivery.
Perguntei ao Rafael quando ele começou a trabalhar como entregador e como é pra ele fazer entregas.
“Eu comecei a trabalhar com entregas em 2018 porque o meu salário não era o suficiente para arcar com todas as minhas contas, senti a necessidade de ter uma renda extra. Eu trabalhava em uma copiadora das 11h às 21h e assim que saia do meu trabalho ia fazer entregas até 01h. É bem arriscado trabalhar com as entregas, a gente tá sujeito a tudo.. acidentes, assaltos, a todo e qualquer risco, infelizmente. Mas quando comecei, trabalhava com mais vontade porque as plataformas pagavam “bem” por cada km rodado. Hoje em dia pagam uma miséria.” diz Rafael.
No começo da pandemia, o número de entregadores ativos no país aumentou. E como Rafael nos contou, o pagamento é de fato baixo. Dadas as circunstâncias da pandemia, o pagamento baixo e a falta de direitos, os entregadores começaram uma greve e para isso contaram com a mobilização das pessoas pela causa, pedindo para que em dias específicos não fizessem pedidos nos aplicativos de delivery, como forma de protesto.
Perguntei também ao Rafa sobre como foi o trabalho durante a pandemia e se sentiu aumento no número de pedidos. Ele conta:
“Os pedidos aumentaram muito, mas por outro lado, tiveram muitos outros motoboys entregando para as plataformas, então o aumento de entregas não aconteceu, muito pelo contrário. Quando ligo o app para receber uma corrida demora muito para tocar, às vezes nem toca
No início da pandemia eu fiquei com muito receio, até diminui os dias em que eu saía para fazer entregas. Nesse meio tempo eu também troquei meu emprego fixo, saí da copiadora e fui trabalhar em uma emplacadora, então eu tinha meu salário ‘garantido’. Quando tudo fechou, fiquei preocupado, já que não tinha dado tempo de me registrar nesse outro emprego. A qualquer momento eu poderia perder o meu salário, então voltei a entregar todos os dias”.
Aqui temos o retrato de duas faces do comércio de alimentos na pandemia. Como é empreender em um momento tão delicado para a saúde e economia de um país e como é o trabalho de quem se arrisca para levar o alimento até a mesa de quem o pediu.
A tecnologia nos permitiu coisas que jamais tínhamos visto ou imaginado, e com certeza facilitou de diversas maneiras a vida de muitas pessoas. Por outro lado, pode ter prejudicado. Se pensarmos como é fácil fazer um pedido em aplicativos, podemos entender também como é fácil para as empresas por trás deles enriquecerem e se esquecerem dos direitos básicos que os entregadores merecem.
A tecnologia foi aliada nesse tempo difícil, e na alimentação não seria diferente.
Essa coluna vem como relato e reflexão acerca da alimentação da pandemia e seus envolvidos.