Por Sergio Vidal aka Mestre SM

Nos últimos dias temos visto o termo BDSM e outros relacionados com a cultura sadomasoquista serem usados com bastante frequência em notícias, artigos de opinião e outros textos relacionados aos casos de abuso supostamente cometidos pelo escritor Neil Gaiman. Não vou falar sobre os detalhes do caso, pois já é um tema que está sendo muito bem debatido em outros lugares. Aqui falarei sobre como os elementos da cultura BDSM muitas vezes são usados por pessoas abusadoras para mascarar seus comportamentos criminosos.

Quem é do meio BDSM, em geral, quando vê notícias como essas, pensa logo que há uma distorção dos fatos por parte da grande mídia. Muitas vezes o abusador não estava utilizando de elementos do BDSM para cometer seus crimes, mas as notícias repercutem dessa maneira para gerar mais impacto e engajamento. Porém, no caso em questão, parece ser diferente. Ao que tudo indica, Neil Gaiman estaria, supostamente, se utilizando de elementos da cultura BDSM para justificar seus comportamentos abusivos. 

O que define o BDSM consensual e ético?

A cultura BDSM e suas práticas são muito bem amparadas em protocolos éticos criados ao longo de décadas. Todos os protocolos, por mais amplos e flexíveis, têm como pontos em comum o Consentimento e a Consensualidade.  Consentimento e Consensualidade são as bases das interações no BDSM. Toda e qualquer interação deve ser baseada numa negociação prévia, onde serão discutidos os interesses e limites, para assim estabelecer o consentimento. O consentimento só é válido se ele for totalmente informado. Isso quer dizer que, mesmo que uma pessoa receba informações teóricas, ela só pode compreender plenamente o que essa experiência implica até ter uma vivência prática concreta. Uma pessoa pode consentir com um determinado jogo com base em explicações, relatos ou vídeos, mas a experiência real pode trazer sentimentos e reações inesperadas, que só são percebidas na prática. 

Portanto, devemos admitir que o consentimento dado antecipadamente a uma experiência da qual não conhecemos não garante que haverá consensualidade plena ao longo do processo. Por isso a necessidade do constante monitoramento e ajustes em relação ao consentimento, especialmente com pessoas que estão a pouco tempo juntas, para garantir que a consensualidade durante a relação se mantenha. 

A consensualidade é um conceito mais amplo e envolve a manutenção e a revisão contínua do consentimento dado inicialmente. É o compromisso de verificar constantemente se todas as partes ainda estão confortáveis e em consenso sobre a situação em curso. Isso significa que, mesmo o consentimento tendo sido dado inicialmente, ele pode ser retirado e/ou adaptado a qualquer momento. A consensualidade requer atenção, escuta e disposição para fazer ajustes conforme as circunstâncias mudam.

No BDSM, para garantir que há consentimento e consensualidade, é usada uma palavra ou gesto de segurança. É um mecanismo que pode ser utilizado a qualquer momento pela parte em submissão para encerrar a cena, sessão ou prática. Esse mecanismo é popularmente conhecido como safeword, ou somente safe.

Neil Gaiman praticava BDSM?

A resposta simples é Não! Com a crescente repercussão desse caso e o fato do acusado argumentar ser um praticante de BDSM para justificar seus atos, se faz necessário uma explicação do porque suas práticas não podem ser encaradas como sadomasoquismo consensual. É imperativo fazer uma distinção clara entre o BDSM consensual e ético e atos que configuram abuso ou violação de limites pessoais.

No sadomasoquismo, mesmo as práticas consideradas mais extremas, são realizadas por que os participantes desejam, buscaram aquilo e estão em consenso sobre o que está ocorrendo. No BDSM ético, há um respeito irrestrito pelos limites pessoais de cada indivíduo. Isso inclui a utilização de palavras de segurança e a possibilidade de renegociar ou interromper qualquer atividade a qualquer momento. A comunicação clara e o cuidado com o bem-estar emocional e físico são pilares indispensáveis. Em suma, o BDSM é uma experiência baseada na confiança mútua e na liberdade de explorar desejos sem que nenhuma das partes seja prejudicada ou desrespeitada.

A distinção entre BDSM e abuso

As acusações contra Neil Gaiman, que vieram à tona recentemente, envolvem relatos de comportamento coercitivo e além dos limites estabelecidos. Embora não possamos emitir julgamento sobre as alegações específicas, é importante entender que, se há violação de consentimento, pressão psicológica ou desrespeito aos limites de uma das partes, o que está em jogo não é BDSM ético, mas sim abuso.

Abuso não é uma prática consensual. Ele se baseia na manipulação, no medo e na negação do direito de uma pessoa de dizer “não”. Na supressão da “palavra de segurança” e, portanto, na impossibilidade de se estabelecer um relacionamento de BDSM consesual. Um dos grandes equívocos do público em geral é confundir a natureza intensa e, por vezes, visualmente impactante do BDSM com relações abusivas. Essa confusão é reforçada por mídias que, com frequência, perpetuam uma representação sensacionalista ou incompleta do universo BDSM.

O impacto das acusações e a responsabilidade da comunidade BDSM

Quando figuras públicas são associadas a acusações de comportamento inadequado que mencionam práticas BDSM, a comunidade que pratica o BDSM ético muitas vezes é injustamente colocada sob suspeita. Isso reflete a necessidade de continuar educando o público sobre o que realmente constitui o BDSM consensual.

A comunidade BDSM tem o dever de reafirmar os valores de ética e consentimento, rejeitando quaisquer atos que comprometam esses princípios. Além disso, é crucial oferecer suporte a vítimas de abuso e encorajar que se manifestem sem medo de represálias ou estigmatização.

Enquanto o BDSM ético promove liberdade, respeito e exploração segura dos desejos, o abuso é uma afronta direta a esses valores. É essencial que não permitamos que comportamentos abusivos sejam confundidos ou justificados sob o pretexto de “serem parte do BDSM”. Essa distinção é vital não apenas para proteger a integridade das práticas BDSM, mas também para garantir que as vítimas de abuso não sejam silenciadas ou invalidadas.

Neil Gaiman é, sem dúvida, um nome respeitado no mundo literário, mas as acusações que o cercam trazem à tona a importância de debatermos a linha que separa o BDSM ético de comportamentos abusivos. Como sociedade, devemos garantir que o debate não apenas esclareça essas diferenças, mas também proteja os princípios fundamentais de respeito, consentimento e ética — tanto no BDSM quanto em qualquer relação interpessoal.

Sérgio Vidal é autor do livro BDSM & Sadomasoquismo Consensual: Guia para curioso(a)s e praticantes e Produtor da festa BDSM “Noite Freak” www.noitefreak.com.br