Foi surpreendente a indicação do Kassio Nunes Marques para a vaga aberta com a aposentadoria compulsória do ministro Celso de Mello no Supremo Tribunal Federal (STF). Bolsonaro havia declarado, várias vezes, a intenção de nomear um ministro “terrivelmente evangélico”, gerando expectativas favoráveis e contrárias que foram desarmadas.

Celso de Mello deixa o STF após 31 anos. Foi nomeado pelo ex-presidente José Sarney, em 1989, ano em que se realizou a primeira eleição direta para presidente da República após o golpe militar de 1964. Ele foi um bastião da democracia no tribunal, um juiz para orgulhar qualquer brasileiro. Encerrou a carreira opondo resistência ao golpismo bolsonarista, que parece contido, pelo menos neste momento.

Da indicação do nome de Kassio teriam participado outros ministros do STF, como Dias Toffoli e Gilmar Mendes, além políticos ligados ao “centrão”, em especial os do Piauí, estado natal de Kassio, como o senador Ciro Nogueira (PP). Mas ela agrada também ao governador Wellington Dias, do PT, que o havia indicado desembargador do Tribunal Regional Federal da 1a Região (TRF-1) a então presidente Dilma Rousseff.

A designação do nome do Kassio para a apreciação do Senado causou indignação nas hostes bolsonarianas mais radicais. Desde o final de semana, circula nas redes sociais de direita a hashtag #bolsonarotraidor. “Quando se aposentar ou morrer o próximo ministro do STF, chega de intermediários: ponha logo no lugar dele o Zé Dirceu”, sugeriu o ex-guru da família presidencial, Olavo de Carvalho. “Justiça poética. A escolha que o Bolsonaro fez para sucessor do Celso de Merda é uma escolha de merda”, tuitou Carvalho.

Outro que ficou puto da vida foi o pastor terrivelmente evangélico Silas Malafaia, que disse pelas redes sociais que é “uma vergonha e decepção geral” a primeira indicação de Bolsonaro ao STF. Irritado, o presidente respondeu que a indicação cabe unicamente a ele e classificou sua escolha como “crucial” para o governo. E atacou: “essa infâmia que essa autoridade lá no Rio está fazendo contra o Kassio é uma covardia. Até porque, ele está fazendo porque queria que eu colocasse um indicado por ele. Com todo respeito, o presidente sou eu”. Malafaia, da Assembleia de Deus, foi um dos principais legitimadores da candidatura do Bolsonaro junto aos evangélicos.

No Congresso, torceram os narizes apenas parlamentares da direita mais estreita, como Bia Kicis (PSL-DF) e Luiz Philippe de Orleans e Bragança (PSL-SP). O “centrão” comemorou a vitória e as oposições, assim como os setores mais progressistas da sociedade, sentiram-se aliviados. Até o PT considerou-se inesperadamente contemplado. Parece que a aprovação do nome do Kassio pelo Senado será rápida e fácil.

Enturmado

Como a indicação teve o beneplácito prévio e a comemoração posterior de, pelo menos, outros dois ministros, Kassio chegará ao STF já enturmado. Tudo isso parece lindo e maravilhoso, a não ser por alguns pequenos detalhes. Por exemplo, essas relações de afinidade passam, também, pelo antilavajatismo militante de Mendes e Toffoli, o que poderia indicar uma postura leniente do futuro ministro no combate à corrupção.

Ao substituir Celso de Mello, Kassio herdará um conjunto de ações e procedimentos de interesse direto do Planalto. Por exemplo, a investigação sobre se Bolsonaro interviu, ou não, na Polícia Federal, por interesse próprio. E, ainda, o caso da famosa “rachadinha”, que envolve mais diretamente o senador Flávio Bolsonaro (Republicanos/RJ), mas que aponta no rumo de desvendar ou não se há caixa-2 familiar. A escolha de Kassio tem tudo a ver com interesses imediatos do Bolsonaro, daí a qualificação de “crucial” pelo presidente. Ele espera cumplicidade do seu indicado.

Embora se diga, a seu favor, que se trataria de uma nomeação “técnica”, para contrapor-se a uma eventual escolha “ideológica” indesejável, Kassio coleciona decisões mais políticas do que bem fundamentadas do ponto de vista legal, e de sentido civilizatório questionável. À direita, menciona-se uma liminar que ele deferiu para permitir a compra de lagosta e de outras iguarias para o menu do STF, aliás, das quais poderá usufruir quando lá chegar. A situação é até meio cômica e serve bem para ilustrar a decepção dos ressentidos.

Mas há outras decisões com implicações mais profundas, como a que permitiu a continuidade das obras de construção de hidrelétrica na Amazônia, mesmo com notórias falhas de projeto e no seu licenciamento ambiental; a que liberou o uso excessivo de agrotóxicos; e a que impediu a retirada de invasores de terras indígenas. Foram decisões dadas em favor de outros governos, mas afins com a agenda predatória que Bolsonaro toca.

Em busca de apoios no Senado, Kassio disse entender que a possibilidade de reeleição de Davi Alcolumbre para presidência da casa, vedada pela Constituição, é assunto exclusivo do Legislativo e pode ser viabilizada com uma simples alteração regimental. Esse entendimento oportuno, digamos, poderia viabilizar, também, a recondução do Rodrigo Maia a mais um mandato à frente da Câmara.

Com a indicação de Kassio, Bolsonaro deu uma dentro, segundo seu próprio interesse, e consolidou a nova estratégia de ampliar a sua influência nos demais poderes, em vez de querer detoná-los com cabos, soldados e fogos de artifício. Desconfio que tenha sido uma escolha menos danosa para a democracia do que poderia ter sido. O tempo nos dirá.

Kassio Nunes Marques tem 48 anos e, chegando ao STF, poderá nele permanecer por 27 anos, até a sua aposentadoria compulsória. Chega cedo ao que se supõe que seja o topo da carreira. Pode ser que surpreenda, para melhor, os que suspeitam da sua subordinação excessiva a quem o escolheu. Basta que tenha zelo, desde agora, pelo sentido histórico da sua função e pela herança que deixará aos seus e aos nossos filhos.