Black face, white power
Este texto é para gente preta ou de quebrada convivendo em espaços de militância branca. Quem quiser pode ficar à vontade para discordar ou simplesmente ignorar esses breves parágrafos. Ele não nasce de nenhuma situação específica. Eu não me inspirei em você pra escrever, ok?
Este texto é para gente preta ou de quebrada convivendo em espaços de militância branca. Quem quiser pode ficar à vontade para discordar ou simplesmente ignorar esses breves parágrafos. O papo aqui é jogar palavras ao vento, para que elas floresçam se tiverem que florescer. Ele não nasce de nenhuma situação específica. Eu não me inspirei em você pra escrever, ok?
Sofremos da síndrome do impostor – essa sensação permanente de que somos uma fraude, estamos ocupando um espaço que não nos pertence e, a qualquer momento, seremos “descobertos”. Colocar nossos pontos de vista em espaços majoritariamente brancos, feudos da pequena burguesia de esquerda, é sempre um martírio, com o qual lidamos de formas diversas. Alguns de nós tentam sobreviver ao descrédito por meio de argumentos moralistas de autoridade, do tipo “você não sabe o que é minha realidade, tem mais que calar a boca”. Ou senão, na chave inversa, universalizamos nossa experiência, tomando nossa própria realidade como parâmetro único do resto do mundo.
Esses dois caminhos, o da particularização ou da universalização radicais, são reconfortantes porque contam com a culpa branca para criar uma blindagem anticrítica. Mas são também sintomas de grande fragilidade, do medo que temos de ter exposta nossa inadequação patológica. Somos recém-nascidos no espaço da branquitude, e não queremos ficar nus diante do privilégio.
Que espaço queremos? Interlocutor de branco? Negro da casa? Porta-voz da favela? Preto único?
Há outras estratégias de sobrevivência à inspeção da nossa baixa autoestima crônica, como o silêncio puro e simples ou a ainda mais grave desqualificação de nossos pares. Funciona mais ou menos assim: aproveitamos o desconhecimento de um irmão ou irmã para ostentar nosso próprio conteúdo diante da branquitude. Obviamente, nós temos buracos graves de formação. Todos nós. E quando detectamos que a discussão caminha para uma pauta do “universo branco” que dominamos, aproveitamos para nos exibir. Até aí, tudo bem. É necessário mostrar pra branco que a gente é qualificado pra falar fora do “nosso lugar”. O problema é quando fazemos isso em detrimento dos nossos.
É uma estratégia cruel de desqualificação de quem “disputa nosso espaço” na militância. E que espaço é esse? De interlocutor de branco? De negro da casa? De porta-voz da favela? De preto único? Dá pra passar uma vida inteira ganhando confete de branco. Dá pra vender livro, se eleger, fazer uma carreira inteira nas costas da culpa branca. E isso funciona, porque não tem jeito melhor de ser aceito do que dar linha pro discurso da meritocracia, se enquadrar 100% na lógica do jogo. Mas isso não ameaça o sistema; reforça. E se você está na militância é para ameaçar o sistema. Caso contrário, melhor ganhar dinheiro sem desclassificar quem está nessa em nome da sobrevivência coletiva.
Em tempos tão sombrios, não podemos nos dar ao luxo de subir sozinhos
Em tempos tão sombrios, não podemos nos dar ao luxo de subir sozinhos. Até porque, chegamos atrasados ao grande edifício do capital. Foi só porque as estruturas se abalaram que nós conseguimos acessá-las. Quando tudo ia bem, ninguém estava procurando incluir gente preta e periférica. Agora, parece que nem capitalismo funciona sem preto. Até o Bolsonaro tem preto de fachada. Nosso erro é confundir essa inclusão conjuntural com uma mudança permanente. O graveto da branquitude é fino pra gente amarrar nosso jegue. E quando ele se romper, qual burro você acha que foge primeiro?
Por isso, acho fundamental a gente pensar seriamente em estratégias para não nos atomizarmos na Casa Grande. E não falo de construir partido preto porque formação de gueto também está muito bem prevista na cartilha do inimigo. Concentrar todos os pretos num lugar só – seja a cadeia, seja a Seppir – é exatamente o que eles querem. Estou falando de exercer solidariedade, nos apoiar uns aos outros, parar com as alfinetadas e construir no afeto e no papo reto quem tá chegando agora. Só assim vamos ocupar tudo: com autodefesa e autocuidado coletivos sem passar pano pra ideia errada, usando nossas próprias tecnologias.
Porque, além da fragilidade pessoal, essas posturas expõem uma contaminação ideológica liberal muito grande. São posições que desconsideram tão radicalmente a existência de uma coisa chamada sociedade que fariam inveja a Margareth Thatcher. São absolutamente calcadas na experiência individual, como se cada um fosse sua própria, única e proprietária ferramenta de análise do mundo.
Nosso erro, muitas vezes, é não trazer para a militância a maneira como a nossa mãe administrava a casa
Isso é a morte da empatia e, consequentemente, da possibilidade de ação política. Política se faz a partir do encontro de denominadores comuns entre experiências diversas. Se você é o único parâmetro do seu mundo – ou melhor, se o mundo só existe dentro da sua própria experiência -, morre a aspiração social, morre a utopia e, consequentemente, a possibilidade de mudança. Ou seja, morre a ação política e a própria militância.
Não sei porque a gente adota essa branquice. Não é a nossa maneira de lidar com o mundo. E eu não estou nem dizendo que é preciso ler Achile Mbembe, Frantz Fanon, Clóvis Moura, Huey Newton e Kwame Ture pra poder militar – embora seja MUITO recomendável. Estou dizendo que nosso erro, muitas vezes, é não trazer para a militância a maneira como a nossa mãe administrava a casa. A última coisa que a vida preta me ensinou foi a primazia do indivíduo sobre o coletivo.
O dinheiro da minha mãe, como o meu hoje, era o dinheiro de uma família extendida inteira. O compartilhamento era a chave da convivência. Nós, por necessidade, por herança ancestral ou pelos dois, vimos de uma experiência de coletividade. Mas quando chegamos à Casa Grande da política de esquerda, ao invés de exportar nossa tecnologia de convivência, importamos o pior do individualismo branco. Pra quê? Por quê?
Talvez porque vários de nós, ao invés de brigar pelo poder para o povo, nos contentemos em ser a black face do white power.