Foto: Raissa Azeredo / Mídia Ninja

O Cerrado brasileiro (sim, com C maiúsculo) é a savana mais biodiversa do mundo e o berço das águas da grande maioria das bacias hidrográficas das Américas. E mesmo assim, sendo um dos principais produtores de água do país, o Cerrado está sendo aniquilado e destruído pelo agronegócio – 50,1% do Cerrado já foi desmatado e degradado para dar lugar a pastos e plantações de soja e milho. 

O segundo maior bioma do Brasil é a morada de diversos povos tradicionais e indígenas que resistem a cada dia ao avanço da tal fronteira agrícola sob a falácia de que o agronegócio está produzindo alimento e gerando trabalho, emprego e riqueza. 

O agronegócio é o grande vilão das mudanças climáticas no Brasil já que 74% das emissões de carbono são oriundas do agronegócio. A água também já está sendo tratada como commodity pelo mercado financeiro que, não satisfeito em especular com nossos alimentos, agora aposta na água como nova estratégia de aumentar ainda mais a desigualdade social e a insegurança alimentar de todo o planeta. 

Mas voltando ao nosso país, é inadmissível permitir que esse plano de destruição continue. Vamos esperar acontecer o mesmo que aconteceu com a Mata Atlântica, que chegou a ter apenas 24% da área original? Basta! O Cerrado possui 20% de reserva legal (o código florestal define que a propriedade privada tem que ter 20% de reserva legal, mas isso não significa que 20% do Cerrado está protegido nessa categoria atualmente), 13,9% de terras indígenas e 6% de unidades de conservação, ou seja, 39,9% está “protegido” pela legislação. Vamos permitir mais quantas mortes? Nossos povos que vivem no Cerrado já relatam que plantas medicinais estão desaparecendo e nossos cientistas também já relatam que a água está diminuindo no Cerrado. “Estimamos queda média de 8,7% e 6,7% na vazão devido ao desmatamento e mudanças climáticas,  respectivamente. A maior parte das alterações observadas (56,7%) deveu-se ao uso do solo e mudanças na cobertura do solo e ocorreram nas últimas décadas.” conta Yuri Salmona, diretor executivo do Instituto Cerrados.

Nosso Cerrado é o bioma sacrificado do Brasil em um modelo econômico de ocupação do território que está em curso desde a colonização do país. A única modificação foi em relação ao recurso saqueado. Primeiro começou com o pau brasil, cana de açúcar, ouro, depois borracha, minério de ferro e agora carne e soja. Tudo commodity que gera pouca riqueza e emprego. “O Brasil vai trocando a exploração do recurso da vez porque não é sustentável, ele se esgota”, conta Yuri.  

Além dessa troca insustentável de recursos, pensar os biomas de forma isolada já foi comprovado pela ciência que não vai funcionar para manter o ciclo da vida. Tudo está interligado. O rio São Francisco depende totalmente do Cerrado, e o Pantanal depende quase que totalmente da recarga dos Chapadões que estão no Cerrado. “É possível destruir totalmente o Pantanal sem tocar no bioma, apenas destruindo o Cerrado”, diz Yuri.

Apesar da Amazônia ocupar quase 50% do nosso território nacional, ela não é uma ilha. Ela depende do Cerrado para sobreviver. Sem proteger o Cerrado, não será possível proteger a Amazônia. O brasileiro médio ainda não se deu conta de que boa parte da água que ele bebe, da energia que ele consome, do alimento que ele come, da cultura, dos cosméticos, vem do Cerrado. Grande parte das nossas raízes mais profundas vem do Cerrado. Isso é um valor subjetivo.

De acordo com Niéde Guidon, o registro arqueológico do país mais antigo é daqui do Cerrado, um esqueleto de mais de 13 mil anos. Inclusive, é também desta arqueóloga brasileira a polêmica descoberta de um fóssil de uma fogueira de mais de 30 mil anos, que refuta a teoria de que o homem teria vindo do estreito de Bering. Segundo a pesquisadora, o Homo sapiens deve ter vindo da África por via oceânica, atravessando o Atlântico. Mas isso ainda é decolonial demais para as mentes de 2023, ainda mais por ser um estudo do sul, ainda mais de uma mulher. 

Também é decolonial demais dizer que o alimento de verdade que comemos vem da agricultura familiar, apesar do censo agropecuário evidenciar que 70% do que está no nosso prato vem do modelo que tem como pressuposto empregar a família. Ainda prevalece o modelo colonial do “fazendeiro” (que normalmente mora em São Paulo ou fora do país) que ocupa a maior parcela do território produzindo a menor parcela do alimento. A proporção se inverte e o brasileiro que perde. A área total dos estabelecimentos iguais ou maiores a 1 mil hectares aumentou de 45% para 47,6%, entre as últimas edições do Censo. Ou seja, os latifúndios aumentaram em quantidade e extensão. Eram 47,5 mil em 2006, ano da pesquisa anterior, e passaram para 51,2 mil em 2017. Além disso, ocupavam 150 mil hectares no passado contra 167 mil hectares mais recentemente. A desigualdade social só aumenta. 

Mas chega de falar da catástrofe em curso, que isso todos já estamos exaustos e sentindo esse clima de fim de mundo com apocalipse. Vamos às 3 propostas de solução trazidas por Yuri: 

1.  Benefícios mais estimulantes para os proprietários de Cerrado preservados, já que 1/3 do bioma Cerrado é formado por propriedades particulares

Sugerimos uma nova categoria de uso sustentável em propriedade particulares, (Reservas Produtivas, Particulares do Patrimônio Natural – RPPPNs) que possam engajar aqueles que vivem do Cerrado de Pé, da manufatura de produtos florestais não madeireiros.

Exemplo: o proprietário que cria uma Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN) tem uma redução de metade do juros do empréstimo que pega no banco. Atualmente, o proprietário que tem o Cadastro Ambiental Rural (CAR) aprovado já ganha um desconto no juros do banco. Ou seja, a pessoa já é recompensada por fazer algo que já é obrigatório do ponto de vista jurídico, então por que não ser também recompensada para fazer uma RPPN?

2. Gestão das Águas; Outorgas e Autorização de Supressão da Vegetação

Atualmente, essa autorização está sendo feita de qualquer jeito. A solução é o estado ser mais rigoroso nessa autorização da supressão. Não é só ir apenas dando 80% de autorização e ok, está tudo certo. O proprietário tem que fazer um estudo que apresente a flora, a fauna e quais os impactos nos recursos hídricos, para daí definir-se se e quanto ele pode desmatar e o mais importante, o desmatamento ser taxativo com base em ciência e qualquer desmatamento tem que repor o mesmo tanto ou mais e na mesma bacia hidrográfica. Não adianta repor em outra bacia! 

Estamos em fase inicial para desenvolver as áreas prioritárias para a conservação de água, que indicará locais mais importantes para proteger e restaurar para ampliar a segurança hídrica, isso pode orientar uma série de políticas públicas. 

“Estamos avançando nesse debate. A ideia é integrar o CAR, com sinaflor [Sistema Nacional de Controle da Origem dos Produtos Florestais], com os sistemas estaduais. É indispensável que o CAR tenha sido validado pelo órgão ambiental antes de autorizar o desmatamento; que haja estudo que indique a capacidade de suporte hidrológico de cada bacia, que os processos sejam transparentes e verificáveis” diz Yuri. 

O mesmo vale para a água, para as outorgas. Quer captar para irrigar? Tem que colocar um hidrômetro para medir e cobrar como elemento de gestão, para garantir o uso prioritário para consumo humano. Todos nós consumidores que somos cobrados pelo uso responsável da água temos nosso consumo mensurado, por que os grandes irrigantes não? 

A meta que o Instituto Cerrados havia proposto ao Ministério do Meio Ambiente é estancar o desmatamento do Cerrado em 50%. Já estamos com 53% do bioma desmatado, ou seja, precisamos restaurar 3% pra começar. Isso implica em uma gestão territorial, que parte da busca de garantir que o Cerrado continue prestando os serviços ecossistêmicos essenciais. Então precisa compensar áreas desmatadas de forma a equilibrar e manter esses serviços por bacia. 

“Isso implica em uma gestão territorial, que parte da busca de garantir que o Cerrado continue prestando os serviços ecossistêmicos essenciais. Então precisa compensar áreas desmatadas de forma a equilibrar e manter esses serviços por bacia”, explica Yuri. 

3. Reconhecimento dos territórios tradicionais 

Temos milhares de territórios tradicionais que conservam o Cerrado de pé e vivem dos conhecimentos ancestrais há milhares de anos. São os nossos guardiões e guardiãs da vida. 

E falando em reconhecimento dos territórios tradicionais, tem um aplicativo muito importante desenvolvido para que povos, comunidades tradicionais e agricultores familiares brasileiros realizem o automapeamento de seus territórios. Se você vive ou conhece algum que ainda não está no mapa, insira aqui. 

Essas 3 soluções trazidas pelo Yuri Salmona são soluções que, com vontade política, podem ser implementadas em um curto prazo. Não temos mais tempo para esperar. É urgente estancar o desmatamento do Cerrado e regenerar o que foi destruído. 

Vamos que vamos, Brasil!