“Assim é, se lhe parece”
Em tempo de pós-verdade, Pirandello ganha atualidade por desvelar o teatro de sombras que encobre o real e dá contornos às aparências.
“Se números frios não tocam a gente espero que nomes consigam tocar” (Chico César e Bráulio Bessa).
Em tempo de pós-verdade, Pirandello ganha atualidade por desvelar o teatro de sombras que encobre o real e dá contornos às aparências. Nos primeiros 15 dias de maio mais do que dobraram os números de casos de contaminação e de óbitos pelo Covid-19, no Brasil, com dados só comparáveis às estultices do Governo brasileiro, com causas e efeitos já agora decorrentes da degradação política do país e do esgarçamento das suas instituições públicas. A 1º de maio, contabilizavam-se 92.109 casos de pessoas contaminadas e 6.410 óbitos e, no 15º, os casos de contaminação bateram a cifra de 218.223 e os casos de óbitos 14.817.
Presume-se, como previu o presidente em meio a um passeio de jet ski, que numa escalada de contaminação “70% da população pegue o vírus”, de forma que, a partir da morte de milhares de pessoas e do caos em que se encontra o país, se justifique o “golpe dentro do golpe”, o novo AI 5, que se manifesta da avenida Paulista à Praça dos Três Poderes e, que, aponta dedos em “gestos de armas” aos quatro cantos do Brasil, contra o Congresso Nacional, Supremo Tribunal Federal (STF), Governadores de estados e Prefeitos de cidades, que defendem medidas de isolamento social.
Se para dar cabo a estes bastaria um “soldado e um jepp”, no caso da população basta o exemplo do expediente de risco adotado pelo presidente desde o início da pandemia: negação da letalidade do vírus – visto que tratava-se apenas de uma “gripezinha” -, presença em manifestações contra o isolamento social, selfies em meio à aglomerações, visitas sem o uso de máscaras às ruas, feiras e cercadinhos, ocupados por simpatizantes. Por fim, a cloroquina: apontada como uma receita e posologia mágica contra o Covid-19.
Na última segunda-feira, 11, o ministro da Saúde Nelson Teich começou a semana surpreendido por jornalistas – em meio a uma entrevista coletiva -, que o informaram sobre a deliberação do presidente Bolsonaro de incluir academias e salões de beleza (manicures, cabeleireiras e barbeiros) na ampliação dos serviços essenciais, sem que a decisão tivesse passado pelo Ministério da Saúde, e que o próprio ministro sequer tenha sido avisado.
Na terça-feira, 12, o presidente se dirigiu aos jornalistas de plantão na rampa do Palácio do Planalto, para justificar a entrega da fita afirmando que a gravação da reunião ministerial realizada no dia 22 de abril deveria ter sido destruída pela sua assessoria. Em depoimento prestado na semana anterior à Polícia Federal, o ex-ministro Moro afirmou que nesta reunião teria sido ameaçado de demissão pelo presidente Bolsonaro, caso não concordasse com a mudança de comando na Polícia Federal. Bolsonaro devolveu a acusação afirmando que Moro teria aceitado a troca, desde que fosse indicado ao STF.
Em razão das denúncias, a Procuradoria-Geral da República (PGR) havia pedido abertura de inquérito e solicitou que o Governo entregasse o material com as gravações ao STF, para que sejam apuradas as acusações do ex-ministro contra o presidente. As fitas foram entregues na segunda-feira, 12, e mantidas em sigilo por determinação do relator do inquérito no Supremo, o ministro Celso de Mello. Os conteúdos das gravações prometem desfechos imprevisíveis e causam constrangimentos e apreensões no Governo.
Na quinta-feira, 14, a Advocacia-Geral da União (AGU) entregou ao STF o resultado dos exames realizados por Bolsonaro para testar o Covid-19, depois de uma batalha judicial entre o governo e o jornal “O Estado de S. Paulo”. Antes mesmo de analisar a matéria, o ministro Ricardo Lewandowski – indicado relator do processo movido pelo jornal para ter acesso ao teste -, acolheu um recurso do advogado do grupo de midia para saber se Bolsonaro entregou todos os laudos dos exames. O jornal informa que o presidente teria utilizado pseudônimos e, que, no último desses exames, sequer consta um nome, mesmo que fictício.
No mesmo dia, o presidente Bolsonaro foi informado por meio de ofício do ministro Celso de Mello, do STF, sobre uma ação movida pelos advogados José Rossini Campos e Thiago Santos Aguiar, que pedem providências ao Supremo junto do presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, para analisar o pedido de impeachment de Bolsonaro, encaminhado por eles em março de 2020. Em 15 meses de governo, já foram protocolados 31 pedidos de impeachment contra Bolsonaro, e os advogados alegam omissão do Legislativo na condução desses processos. Sobre o assunto Rodrigo Maia declarou à imprensa que “não é o momento de pôr esse tema na pauta”.
Ainda na quinta-feira, o vice-presidente Hamilton Mourão, provocou ainda mais inquietações no conturbado cenário político do país com o artigo “Limites e responsabilidades”, publicado no jornal “O Estado de S. Paulo”. Mourão abre o seu artigo anunciando com gravidade: “A esta altura está claro que a pandemia de Covid-19 não é só uma questão de saúde: por seu alcance, sempre foi social; pelos seus efeitos, já se tornou econômica; e por suas consequencias pode vir a ser de segurança”. Para já, o que se nos apresenta no horizonte, “repete a história como tragédia ou como farsa”.
O vice, que é general da reserva, admite que nenhum país do mundo indica solução imediata para combater os males da doença e, que, “cada qual procura enfrentá-los de acordo com a sua realidade”, reconhece todavia que “nenhum vem causando tanto mal a si mesmo como o Brasil. Um estrago institucional que já vinha ocorrendo, mas agora atingiu as raias da insensatez, está levando o País ao caos”. Curiosamente, os governos que mais apresentam resultados positivos no combate ao vírus, compreendem que o isolamento social é a forma mais sensata de controlar a pandemia e evitar o caos.
Caos, que o general resume em quatro pontos identificados ao largo do Governo ao qual pertence, transferindo a responsabilidade, primeiro, à sociedade e à imprensa: “À polarização que tomou conta de nossa sociedade, outra praga destes dias que tem muitos lados, pois se radicaliza por tudo, a começar pela opinião”. Segundo o vice-presidente: “Tornamo-nos assim incapazes do essencial para enfrentar qualquer problema: sentar à mesa, conversar e debater. A imprensa, a grande instituição da opinião, precisa rever seus procedimentos nesta calamidade que vivemos”. Certamente por isso, o vice-presidente concorda com o “cala a boca” à imprensa do presidente e com a violência dos seus seguidores contra os jornalistas, como se viu há poucos dias numa manifestação acompanhada por Bolsonaro nas proximidades do Palácio do Planalto.
No segundo ponto, em alinhamento bem ajustado com o presidente, acusa governadores, magistrados e legisladores pela “degradação do conhecimento político” que, segundo ele, deveria ser usado por estes de maneira responsável, “sem esquecerem que o Brasil não é uma confederação, mas uma federação”. Aproveita para enaltecer os EUA, como era de se esperar: “Pela criação desta forma de organização política em que o governo central não é um agente dos Estados que a constituem, é parte de um sistema federal que se estende por toda a União”.
E emenda com o terceiro ponto, citando uma improvável “usurpação das prerrogativas do Poder Executivo pela quebra de fundamentos básicos que definem o Legislativo, o Executivo e o Judiciário, como instâncias separadas e distintas”. O vice-presidente afirma que esta “regra é estilhaçada” no Brasil de hoje: “Pela profusão de decisões de presidentes de outros Poderes, de juízes de todas as instâncias e de procuradores, que, sem deterem mandatos de autoridade executiva, intentam exercê-la”. A verdade é que o presidente da República tem se manifestado publicamente questionando a importância desses mesmos Poderes, inclusive fazendo discursos em eventos convocados pelos seus seguidores, com o intuito do fechamento do STF e do Congresso Nacional, e da instauração da ditadura militar no país.
Por fim o vice-presidente aponta os supostos prejuízos causados à imagem do Brasil no exterior, segundo ele, decorrentes das manifestações de “personalidades desprestigiados ou simplesmente inconformados” com o governo democraticamente eleito em 2018. O general afirma que essas “personalidades desprestigiadas” que desconhecem a região e pela qual jamais fizeram algo de palpável, usam do seu “prestígio” para fazer “apressadas ilações e apontar o País como ameaça a si mesmo e aos demais na destruição da Amazônia e no agravamento do aquecimento global”. O general posiciona-se desta forma, aparentemente contraditória, de “dar uma no cravo e outra na ferradura¨ num discurso politicamente concertado e, naturalmente, estratégico.
Pelo exposto neste ponto e, para não ir muito longe, o vice-presidente parece não ter lido a matéria da medida provisória 910/19, editada pelo presidente Bolsonaro e em tramitação no Congresso, que permite obter títulos sem vistoria prévia em áreas de até cerca de 1.400 hectares, em municípios da Amazônia, facilitando a invasão e o desmatamento ilegal de terras públicas, validando inclusive, as ações de grileiros que entraram nestas terras até dezembro de 2018.
Com uma pesquisa elementar na Internet, sobre o que é publicado diariamente na imprensa internacional sobre a realidade brasileira atual, seguramente o vice-presidente descobriria que os tais prejuízos causados à imagem do Brasil são exclusivamente de responsabilidade do presidente da República, pelas suas estultices diárias.
Para fechar a semana, na sexta-feira, 15, o agora ex-novo ministro da Saúde, deixou do cargo – o segundo demissionário da pasta em menos de 30 dias -, em meio a uma tragédia sanitária sem precedentes na história do país, enquanto o Governo faz cara de paisagem na hora do enterro de milhares de brasileiros.