Foto: Ascom/Governo da Bahia

Em setembro de 2018, a comunidade do Terreiro Tumba Junsara, localizado em Salvador, no Engenho Velho de Brotas, estava em festa. Na ocasião, depois de uma longa batalha e expectativa da comunidade de santo, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) o incluiu em um seleto grupo de templos afro-brasileiros que são reconhecidos como parte do patrimônio cultural do país. Uma conquista dessas é para ser muito celebrada diante da batalha para resistir de uma religião historicamente perseguida, que, na Bahia, só deixou de ser caso de polícia em 1976, quando o governador Roberto Santos assinou um decreto. A partir dessa decisão acabava a necessidade de exibir uma autorização para realizar seus ritos fornecida pela Delegacia de Jogos e Costumes, que, como o título deixa evidente, tinha poderes para apurar contravenções relacionadas aos chamados jogos de azar e prostituição.

Fundado em 1919 por Manoel Ciriaco de Jesus, de nome sagrado (dijina) Nlundiamungongo, e Kambambe, dijina de Manoel Rodrigues do Nascimento, o Tumba Junsara integra o conjunto formado pela Casa Branca, Gantois, Ilê Axé Opô Afonjá, Alaketo, Bate-Folha, Roça do Ventura, Oxumarê, Agboula e a Casa das Minas, o único fora da Bahia, localizado no Maranhão. Mas o que foi festa e um título merecido tornou-se para a comunidade o desafio de vencer uma intricada rede da burocracia estatal, em variados âmbitos, que, quando se trata de povos tradicionais, mesmo com seus direitos constitucionais e legais assegurados nos mais variados documentos, nunca os acessa na mesma velocidade que os problemas emergenciais que necessita solucionar.

Em março do ano passado, durante as chuvas que são sempre fortes na capital baiana neste período, cedeu parte do teto do anexo onde fica a residência de Iraíldes Maria da Cunha, Mameto de Inquice Mesoangi, líder religiosa do terreiro, e sua família. O mesmo ocorreu com uma parte da estrutura de um dos quartos cerimoniais.

Acervo Tumba Junsara

A Defesa Civil do Salvador (Codesal) foi acionada e determinou que as pessoas deixassem o imóvel até que os danos fossem reparados além de apontar riscos estruturais. A Abentumba, sociedade que representa o terreiro civilmente, comunicou o Iphan e também o Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia (IPAC) sobre os danos, além de promover a a suspensão de atividades, inclusive das festas públicas a partir de abril do ano passado. Foi um duro golpe para a comunidade do Tumba Junsara pois 2019 seria o ano de celebração do centenário de um terreiro que tem casas afiliadas em vários outros estados, como Minas Gerais e Rio de Janeiro.

A Abentumba também viabilizou a saída de Mameto Mesoangi para um imóvel alugado a partir de uma campanha de arrecadação de fundos realizada entre os próprios membros da comunidade. A esperança era que em um ano, duração do contrato de locação, as obras tivessem sido concluídas. Mas no mesmo mês de maio em que esses arranjos foram concluídos outra parte do teto desabou e mais uma vez o Iphan foi comunicado.

Ações

Sem recursos, principalmente por conta das necessidades de adequar os reparos aos laudos técnicos especializados, a Abentumba fez, em junho, reuniões com a participação de representantes do Iphan, do IPAC e da Secretaria  de Cultura do Estado da  Bahia (Secult) para encontrar uma solução. Em agosto do ano passado voltaram a pedir ajuda ao Iphan e ao Ipac para uma nova reunião (Ofício nº 27/2019), mas não ocorreu o encontro. O mesmo procedimento foi repetido em dezembro do ano passado (Ofício nº 30/2019).  De lá para cá até o Ministério Público Federal já enviou ofício requerendo informações sobre a desocupação do espaço e andamento das obras.

Estamos nos aproximando de setembro quando o Tumba Junsara vai completar dois anos da festa pelo tombamento e a alegria da conquista, se transformou em angústia. Mesmo que, assim como a maioria dos terreiros situados na capital baiana, apesar da liberação da prefeitura, continue sem realizar cerimônias públicas devido à pandemia do coronavírus em respeito à segurança de sua comunidade, o Tumba Junsara está impedido de promover adequadamente  os ritos internos que não geram aglomeração. Além disso, a líder religiosa da casa está ausente do espaço onde exerce seu sacerdócio e sempre viveu.

O mesmo estado que reconheceu a importância do terreiro como um bem cultural brasileiro não consegue articular sua própria rede para dar proteção ou agilizar os procedimentos de uma estrutura que reconheceu como parte da formação cultural do país. Para ser incluído em um seleto grupo de templos afro-brasileiros, o Tumba Junsara foi avaliado em um processo cuidadoso: laudos antropológicos, históricos e análise de sua importância cultural para além das fronteiras da Bahia. Sabe-se que o reconhecimento de um imóvel ou manifestação cultural como patrimônio não significa acesso irrestrito à ajuda do poder público para sua manutenção, mas espera-se ao menos o reconhecimento de que ele necessita de uma proteção que inclui o acesso a linhas de editais ou outros projetos e programas de fomento adequados à sua preservação, especialmente de estrutura. É assim que as igrejas católicas seculares e tombadas são reformadas em sua esmagadora maioria.

Diversidade

A política de reconhecimento dos terreiros como patrimônios brasileiros começou com o  Ilê Axé Iyá Nassô Oka, mais conhecido como Casa Branca do Engenho Velho da Federação em 1984. Foi uma ação que dividiu a própria área técnica da então Secretaria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN). Até então apenas os templos católicos tinham esse status.  O debate foi amplo e o reconhecimento à Casa Branca colocou o candomblé como um dos elementos considerados parte da formação da cultura nacional que por isso merece status especial de proteção.

O tombamento do Tumba Junsara trouxe outro fator para enriquecer essas conquistas: a Casa é a segunda de tradição angola reconhecida como patrimônio nacional. A primeira foi o Bate-Folha, localizada no bairro de Mata Escura, também em Salvador. A presença de casas de outras nações, além da ketu, dá visibilidade à diversidade e complexidade que cercam o candomblé.

Nação é  um termo político que passou a definir um conjunto de características para situar, especialmente o que podemos apontar como práticas litúrgicas de um terreiro, questão discutida detalhadamente em um texto de autoria do antropólogo Vivaldo da Costa Lima  e publicado em 1976 (Revista Afro Ásia, n.12).  Na Bahia, há pelos menos quatro categorias relacionadas a estas nações reivindicadas mais constantemente pelos terreiros:  angola, ijexá, jeje e ketu. Não é uma classificação fechada para ser aplicada indiscriminadamente, sem ressalvas, pois algumas características de uma nação em Salvador podem divergir em terreiros de Cachoeira, que está a apenas aproximadamente 120 quilômetros da capital, por exemplo.

A língua que se usa para os cânticos e ritos é um indicativo central na classificação da nação. Em Salvador, as casas de nação angola tem línguas da família banto (kikongo e kimbundu),como base da sua liturgia. Nestes terreiros as divindades são chamadas de inquices. Regem, elementos da natureza, como Dandalunda, senhora dos rios e das fontes e cachoeiras; Bamburecema que domina os raios e ventos; Mutalombô, senhor das matas; Kavungo que domina os mistérios sobre a vida, morte e cura e é o patrono do Tumba Junsara, e  Lemba, o pai mais velho, dentre outros. A líder religiosa de um terreiro de tradição angola pode ser chamada de mameto ou nengua de inquice. Quando é um homem que assume o mais alto posto de um terreiro angola seu título é tata de inquice. Os  sacerdotes que auxiliam o culto e não entram em transe são chamados de tatas; as sacerdotisas na mesma categoria são as makotas e aquelas e aqueles que passam pelo rito iniciático e entram em transe são chamados inicialmente de muzenzas.

Essa tradição é considerada uma das herdeiras dos calundus, as práticas mais ou menos sistematizadas dos primeiros povos que chegaram ao Brasil sob a violência da escravidão e que vieram das regiões da atual Angola e parte do Congo. Na estruturação do que chamaríamos de candomblé, essa nação foi, ao que é praticamente um consenso, ao menos na Bahia, a primeira a manter um diálogo com práticas indígenas no culto aos caboclos considerados os “donos das terras brasileiras”. É muito comum ouvir no âmbito destes terreiros que cultuar os caboclos- único rito que é feito totalmente  em português- é respeitar quem os acolheu quando chegaram como “estrangeiros”. Sabe-se também da cooperação entre povos indígenas e africanos da região angolana em movimentos contra a escravidão como os quilombos de Palmares e  o liderado por Tereza de Benguela, este na região do atual Mato Grosso. Muitos dos caboclos do candomblé têm nomes indígenas, como Tupinambá, e se apresentam vestidos com cocar e outros adereços das culturas destes povos.

Só esses elementos dão conta do porquê do Iphan ter continuado a reconhecer os terreiros como patrimônio. Infelizmente estamos diante da tragédia de desmonte que tem se abatido, nesse atual governo federal, sobre este órgão e todas as instituições que tentaram desde a redemocratização ampliar os horizontes sobre a nossa formação cultural como povo, inclusive reconhecendo-a como multiétnica.

O reconhecimento como patrimônio foi uma vitória para o Tumba Junsara e todos os outros, especialmente contra o racismo religioso. Ela é um indicativo de como o candomblé continua valente e  depositário de lições preciosas sobre estratégia política, inclusive desmontando o discurso reducionista até sobre os movimentos negros, pois ele é um deles. Mas agora é necessário encontrar caminhos para cobrar o Estado a ir mais além e transformar essa política de proteção em algo mais pragmático para quem realmente precisa. Com esse governo federal atual, a luta vai ganhar contornos de batalhas empedernidas, mas o candomblé já mostrou que não foge a nenhuma das guerras que precisa travar para continuar a existir.

Para quem deseja conhecer fontes de pesquisas acadêmicas sobre as nações de candomblé. 

A formação do candomblé- Luis Nicolau Parés

O conceito de nação nos candomblés da Bahia- Vivaldo da Costa Lima  

Iyá Zulmira de Zumbá: uma trajetória entre nações de candomblé- Marlon Marcos

Cleidiana Ramos é jornalista, doutora em antropologia, professora e publisher da Flor de Dendê