“Animalidades Híbridas”, com Lino Arruda
O entrevistado da semana para o #ArtistaFOdA é o artista plástico, quadrinista e transmasculino Lino Arruda. Nascido em Campinas, atualmente vive em São Paulo, onde espera ansioso o lançamento de seu novo livro “Monstrans: experimentando horrormônios”, que acontecerá em julho desse ano.
Por Amanda Olbel para a Mídia NINJA / FOdA
O entrevistado da semana para o #ArtistaFOdA, seção da Mídia NINJA dedica a dar visibilidade a artistas LGBT+ no Brasil, é o artista plástico, quadrinista e transmasculino Lino Arruda. Nascido em Campinas, atualmente vive em São Paulo, onde espera ansioso o lançamento de seu novo livro “Monstrans: experimentando horrormônios”, com patrocínio do Itaú Rumos, que acontecerá em julho desse ano.
“Acredito que o desenho tenha sido uma das ferramentas mais importantes que me ajudaram a elaborar sentimentos e ideias, ou seja, foi um elemento chave para articular processos subjetivos: fui uma criança introspectiva, que sentia a necessidade de criar mundos internos alternativos, em parte devido às dificuldades de me inserir socialmente.”
Lino é Bacharel em Artes Visuais pela Unicamp e Universidade Politécnica de Valencia, mestre em História da arte pela ECA-USP, e doutor em literatura pela Universidade Federal de Santa Catarina- University of Arizona, e nos conta que sua trajetória na arte iniciou-se cedo, muito por influências de sua mãe, que também é artista. Logo, obteve na expressão artística um apoio e refúgio para os ataques alheios que sofria na adolescência, e encontrou assim uma vivência paralela, na qual se identificava com personagens, cenários, e relações, onde se sentia acolhido pela atmosfera de segurança e conforto dos desenhos.
Participou também de diversos eventos acadêmicos nacionais e internacionais no México, Colômbia, Paraguai, Equador e Estados Unidos, palestrando sobre arte feminista e representação sudaca e deu diversos workshops sobre edição de memória, contação de histórias e produção de zines para comunidades dissidentes. As mais significativas foram durante o doutorado sanduíche, no qual foi a primeira pessoa trans brasileira a ganhar uma bolsa Fulbright para estudar nos EUA.
O primeiro quadrinho que fez foi inspirado em uma amiga, com a qual se identificou na época, e que falava sobre lesbianidade no cotidiano, fora da articulação da relação sexual/romântica. E por sentir que era um relato pertinente a realidade de corpos LGBTQIA+, decidiu compartilhá-la com outras pessoas.
“Até então nunca tinha me interessado pelos quadrinhos, mas comecei a fazê-los porque era uma técnica barata, fácil e viável (conseguia fazer sozinha, sem precisar de nada mais do que caneta e papel). O resultado era bem precário, mas foi um zine muito querido e importante, que circulou bastante naquele momento e com o qual pude criar vínculos que mantenho até hoje.”
Em 2010 entrou no mestrado na linha de arte política da ECA- USP, onde estudou arte feminista. E vale ressaltar que boa parte de sua caminhada artística, se identificou como uma mulher lésbica, passando pela transição quase aos 30 anos e hoje até brinca com os termos, se autodenominando “transmasculésbico”. Portanto, nesse período, sua produção artística foi totalmente canalizada para o ativismo em coletivos feministas autônomos: fazia estampas para camisas (como as dos festivais Vulva la Vida), ilustrações para cartazes de diversos eventos e shows, capas de zines e de CDs de bandas punk feministas, etc. E conta que nenhum desses trabalhos era remunerado, sendo seu trabalho oficial ter sido sempre a pesquisa acadêmica com foco nos estudos de gênero, mas o ativismo era o ambiente que mais o estimulava afetiva, artística e intelectualmente.
Arruda compartilha também que foi nesse período de dedicação ao ativismo autônomo que surgiram os zines de quadrinhos colaborativos dissidentes, com foco em autorias lésbicas. O primeiro deles foi o zine Sapatoons, que diz ser um dos seus projetos preferidos. É um zine colaborativo que surgiu em 2011, feito por amigues lésbicas, bissexuais e transmasculinos. Com proposta despretensiosa, sua função principal foi disseminar cultura dissidente imaterial (histórias, piadas, receitas de comidas, trocadilhos, etc), criando redes e fortalecendo laços de amizade, principalmente pelo fato de que a representação de lésbicas na cultura hegemônica sempre foi muito precária, e ausente nos filmes, novelas, etc.
Quando questionado a respeito de suas referências revela ter sido inspirado pelo trabalho de Alison Bechdel, Jennifer Camper, Edie Fake e Diane Dimassa ( da qual cita a publicação “Hothead Paisan” como grande inspiração para as colaborações nos zines Sapatoons – infelizmente a autora se identifica hoje com um movimento transfóbico contra mulheres trans. E em âmbito nacional, cita os trabalhos de Diana Salú e Monique Moon.
Todavia, suas principais influências de início de estrada, eram Paula Rego, Oskar Kokoschka, Egon Schiele e as gravuras do Goya, além dos artistas que construíram o imaginário da ilustração de fábulas, com animais antropomorfos feitos em traços finos e aquarela, que entram em total acordo com a figuração incrivelmente visceral e um tanto grotesca de seu trabalho, com corpos fantásticos e retorcidos.
Representações que nos remetem a história clássica kafkaniana de Metamorfose, em que subitamente, de um dia pro outro, o personagem acorda como uma barata, fazendo alusão à visão deturpada que a sociedade tem da classe trabalhadora. De certa forma, Lino utiliza desse artifício dos seres que supostamente nos causariam repulsa, (como ratos, lobos e lagartas), ao falar de sua experiência dentro desse “não-lugar” estigmatizado, que é a ausência de identificação com o gênero imposto a nós. Artaud diria que os corpos estão em incessantes processos de Devir: num eterno vir a ser, entre mitos, danças e delírios, e para ele interessam as microssensações e a consciência que deve mergulhar nos campos da angústia, abdicando da certeza. Diria ainda que o corpo é “uma multidão excitada”, e portanto, o denomina como Corpo sem Orgãos, por ser coletivo, político e biológico, e permitir a desterritorialização, juntamente dos pontos de fuga.
Dentro dessa mesma conversa poderíamos citar os corpos foucaultianos, capturados dentro da estrutura de biopoder vigente, em que esse lugar de transgressão da norma, foi introjetado e ocupado pela sexualidade. Então fica a pergunta sobre o trabalho de Lino: Será que estes corpos são de fato monstruosos e deveriam obrigatoriamente se sentirem diferentes e dissociados, ou será que vivemos na ilusão de que os corpos deveriam ser equiparados, mapeados por um processo sistemático, mesmo fora da não-binariedade para serem aceitos?
Seu projeto com quadrinhos autônomos e acervo de zines cresceu sempre nos bastidores da sua vida acadêmica, até que no doutorado resolveu estudar autorrepresentação trans em zines latino-americanas. Foi então que descobriu a frequência com a qual a figura do monstro é evocada para falar sobre experiências trans, e começou a desenvolver narrativas também na chave da monstruosidade:
“Foi nesse momento que criei o personagem ‘lobisomem trans’ e comecei a desenhar um caderno de estudos de animalidades híbridas que comunicam sobre dissidência de gênero”
No doutorado diz ter, finalmente, conseguido inserir sua prática artística em diálogo com o conhecimento acadêmico. Desenvolveu o último capítulo de sua tese em quadrinhos, com o pretexto de que, enquanto primeiro doutorando trans do programa, precisava produzir algo que de fato fosse interessante para a comunidade, tendo em vista que poucas pessoas se interessam pela escrita acadêmica e que temos pouquíssimas/os pesquisadoras/es trans nas instituições de educação formal. A ideia é que esse capítulo se desprendesse da tese e virasse um zine, para que circulasse fora da academia e mais próximo de outras pessoas trans, que acabou por ser contemplado pelo Itau Rumos 2017-2018, e hoje integra o livro “Monstrans: experimentando horrormônios”, em que publica as HQs autobiográficas que vem desenvolvendo nos últimos 2 anos, e será publicado em Julho de 2021. Lino enfatiza ainda que toda a equipe trabalhando no livro, com exceção da gráfica, é formada por lésbicas cis e pessoas trans.
Nele desenvolve três histórias sobre deficiência, lesbianidade e transmasculinidade utilizando a figura do monstro. Na primeira história relaciona a masculinidade lésbica aos tratamentos pelos quais passou desde a infância para “corrigir” uma deformação congênita nos ossos – por ter diagnóstico de doença do colágeno, com suspeita de síndrome de Ehler Danlos. Faz também uma observação para a relação muito próxima entre ser “simétrica/bonita” e ser “menina”, e que a deficiência acentuava outros lugares “tortos” e indesejados de seu corpo, como a masculinidade.
Na segunda HQ do livro, traça pontes que conectam lesbianidade a transmasculinidade, contando sobre o desconforto de acessar privilégios de passabilidade.
Na terceira história tenta criar uma temporalidade dissidente para abordar a incoerência da subjetividade trans, usando as relações de família para explicitar e acolher as fragmentações de ter sido uma menina, uma filha, uma neta, e depois tentar ser inteligível como uma pessoa transmasculina, num mundo onde “mudar de gênero” é praticamente inconcebível.
“Também há um estereótipo na forma como se anuncia personagens trans, com a aposta na revelação da genital ou da representação da hormonização. A ênfase no sofrimento também é uma constante muito limitadora, tanto no diagnóstico da transexualidade como na representação mainstream das nossas experiências. Essas imagens têm efeitos reais na nossa comunidade.
Por isso acho que a produção autoral trans tem um potencial singular. O que eu descubro observando o que a comunidade trans tem produzido, são formas de tocar temas complexos (como a solidão estrutural, a violência, o suicídio, etc) com humor inteligente e através de uma perspectiva criativa. O que eu tento fazer no meu trabalho é desviar das narrativas clássicas (a exemplo de: “eu nasci um homem preso no corpo de uma mulher”) e procurar o interstício das experiências de gênero, os lugares onde as identidades não estão tão sólidas, onde as narrativas se contradizem e não tentam “se explicar” para um público cisgênero. Para isso percebo que o emprego de figuras monstruosas e animalescas é uma aposta interessante da autorrepresentação, pois é capaz de dar contornos mais borrosos e múltiplos ao corpo trans.”
Demonstra sentir o desafio e o fardo da representação, sem querer delimitar “o que é transmasculinidade”, por estar correndo o risco de virar uma descrição genérica. Contanto, frisa bastante que essa é sua experiência autobiográfica, e que portanto comunica sua trajetória particular, mas são assuntos que o preocupam num momento politicamente polarizado, retrógrado e conturbado pelo qual estamos passando atualmente.
“O meu objetivo com a publicação é pluralizar as narrativas sobre transmasculinidade em suas intersecções com outros marcadores sociais. Me interessa produzir algo que alimente a minha comunidade, ou seja, algo que possa reverberar na experiência de outras pessoas trans, mas que também as beneficie socialmente de alguma forma. Acredito que tenho um compromisso com a comunidade justamente por ocupar lugares privilegiados, ainda inalcançáveis para a maioria das pessoas trans, especialmente as negras. Por isso, ao ser contemplado com um prêmio importante como o do Itaú Rumos, me sinto compelido a dividir materialmente essa conquista com pessoas trans vulneráveis, como forma de reparação.”
Ocorrerão eventos de lançamento do livro, que devido à pandemia não poderão ser presenciais, entretanto, através de plataformas online acontecerão lives com diferentes ativistas e artistas para falar sobre o HQ, semanalmente no mês de julho. Uma porcentagem das vendas do quadrinho também será redirecionada a uma casa de acolhimento travesti/trans.
Lino Arruda compartilha fotos e informações sobre seus trabalhos através de sua conta no instagram @monstrans_hq e em seu site www.linoarruda.com. Para ficar por dentro dos próximos #ArtistaFOdA , siga nossa página @planetafoda, onde serão publicados novos artistas LGBTQIA+ todas as quintas-feiras.