A triste folia dos que debocham da morte
A festa dos Comensais da Morte
O Brasil, nas últimas semanas, acelerou a espiral de ruptura em que não vejo uma saída para fácil reconciliação. Alguns estudos da arqueologia afirmam que as sociedades humanas alcançaram uma fase diferente daquela dos nossos primos primatas quando começaram a celebrar ritos funerários. Parte considerável do que herdamos como referência cultural nos faz viver a tristeza diante do inevitável desfecho da trajetória de qualquer ser sobre a Terra, que é a morte. A filosofia tem se dedicado à tragédia humana que é a nossa consciência de que morrer é a única certeza que se tem na vida.
Por isso diante da morte tudo se transforma: o barulho dá lugar ao silêncio; inimigos fazem uma trégua; até as ofensas, manda uma espécie de bom senso, cessam mesmo que seja alguém com uma biografia totalmente deplorável.
O que se pode então dizer de um grupo de humanos que rompe um pacto social antigo ao debochar do luto de quem acabou de perder o foco de seu afeto? E mais: isso diante de uma tragédia humanitária piorada pela negligência do Estado, especialmente o governo federal, que, em tese, deveria oferecer caminhos para preservar vidas diante de uma doença ainda desconhecida em vários aspectos, como a covid. Qual é a saída para uma nação que tem um chefe de estado que se cala ou debocha de quem está perdendo a vida na maior tragédia humanitária desse ainda recente e iniciado século? Nenhuma. Só há confusão, ódio, dor e incertezas em direção a estas perguntas ao menos por enquanto.
Por mais que eu tente não consigo apagar da retina imagens de gente, vestida com uma camisa que é a representação da Seleção Brasileira de Futebol, empunhando bandeiras nacionais e vociferando com a desculpa de um falso dilema: a economia é mais importante do que sobreviver em uma situação totalmente atípica.
Eu que adoro futebol não consigo me emocionar com o meu time do coração, diante da insistência de clubes, federações e seus dirigentes, para manter jogos com mais de 300 mil vidas ceifadas por uma pandemia. E mais: expondo seus atletas e outros profissionais a contaminação em série como vem ocorrendo desde o ano passado.
Doenças virais têm sido o calcanhar de Aquiles dos tempos mais recentes. Se estamos em certa medida pensando na conquista de Marte ou desenvolvendo tecnologias de realidade estendida um vírus que ataca o sistema respiratório e rapidamente produz uma espécie de caos sistêmico colocou o mundo inteiro de joelhos. Mesmo nações cheias de poder político e dinheiro tentam vencer a guerra apenas com as armas que têm sido consideradas mais eficientes: vacinas, proteção facial- com as máscaras- e distanciamento.
Sem saída
Mas então o que fazer em um país, como o Brasil, que se arrasta em crises e mais crises especialmente econômicas com um tal “mercado” ditando as regras do que o Estado pode ou não pode fazer em relação a desigualdades? Isso deveria ser a pergunta respondida por quem governa, mas não. A regra atual tem sido a de criar mais caos, desinformar- o tal “tratamento precoce” é uma aberração revoltante- e mobilizar uma minoria para disseminar ódio e mais ódio. Desprovida de qualquer capacidade cognitiva é uma gente que já abdicou da condição de pensar e que deseja apenas gritar.
Não me sai da cabeça, por exemplo, as cenas de dois homens que berraram, babando de ódio, para uma fotojornalista durante uma manifestação em Salvador, ao defender, segundo diziam, a “economia”: “vagabunda, comunista”. Imaginem a contradição das duas agressões: vagabundo é quem não trabalha, logo a ofensa nem tem sentido. Já comunista é, mais uma vez, sinônimo para quem essa claque, cada vez mais raivosa, identifica como inimigo. Não há nenhuma noção ou conhecimento ao que parece do que é comunismo e de que esse sistema nunca sequer esteve perto de se efetivar no Brasil.
Ao rever imagens de manifestações também em outras cidades brasileiras e, que até já ando evitando para manter a saúde emocional, fico angustiada de como vivemos em um cenário que lembra as produções das fantasias de terror no estilo O Senhor dos Anéis ou Harry Potter. Aliás, chegamos ao nível em que não podemos citar o nome do presidente do Brasil nas nossas críticas. Apelamos para aproximações ou apelidos, especialmente nas redes sociais, para nos proteger da horda de robôs ou gente escondida em perfis falsos que chegam para xingar, atacar e ameaçar. O que torna alguém sem racionalidade para argumentar e que ofende com signos sem sentido no estilo ta-ta-bi-tá? Ou que usa chavões esvaziados pelo ódio a quem contesta o Brasil de fantasia em que vivem?
São como os “comensais da morte” da saga Harry Potter. Estas figuras que agora deram para desfilar pelas ruas em seu triste convescote de horror me lembram, por exemplo, a personagem Bellatrix Lestrange que, ao ser cooptada pelo Lorde das Trevas, Voldemort, vira uma espécie de caricatura da bruxa poderosa que foi no passado repetindo uma cantilena provocativa para tirar as heroínas e heróis da saga do sério. Ou seja: fazem a guerra da provocação que, antes de qualquer coisa, desestabiliza porque mexe com a indignação por desrespeito a padrões morais.
É algo que até faz pensar se existe, além da covid, a epidemia de uma doença, ainda desconhecida, que dissolve qualquer tipo de compreensão racional básica. Defender comércio e emprego acima da preservação da vida é moralmente indefensável. Óbvio que em um país desigual há gente passando fome, mas não esses que estão na rua protestando em defesa de um presidente que é arauto de tantas coisas que matam. Donos do dilema de se arriscar pelo contágio ou ficar sem nada sequer para comer são os que não foram incluídos em nenhum tipo de plano de proteção desde o início dessa tragédia. Em sua maioria são os trabalhadores de limpeza pública; mulheres que atuam no trabalho doméstico, sobretudo negras, os que estão nas portarias e outros serviços dos complexos residenciais das grandes cidades. Para estes não se pensou em uma alternativa em nenhum momento e, também, não estão nos planos desse falso dilema de quem está gritando que não precisa de vacina porque tem cloroquina.
A morte vai vencendo
Aliás, se estes estão realmente preocupados que protestem para que o governo que tanto defendem trabalhe. Quem está em gestão não vive para administrar coisas fáceis. Pelo contrário. Deve merecer a confiança dos demais, isso em um sistema democrático, porque, em tese, é capaz de unir determinadas qualidades, inclusive criatividade para encontrar saídas em situações adversas.
Mas aqui estamos em meio ao que só cheira a morte. Na minha infância e adolescência fui católica. Esse, como agora, é o período de Quaresma, quando se faz penitência para que se chegue à Páscoa preparado para celebrar a crença maior do catolicismo, que é a vitória de Jesus sobre a morte ao ressuscitar. Até a alimentação muda, o que para mim era um motivo de angústia, pois nunca gostei de carne de peixe e hoje já não consigo comê-la de forma alguma. Mas nas quartas e sextas-feiras da Quaresma, durante a infância, eu tinha que fazer o “sacrifício”.
Na Sexta-Feira da Paixão, em minha cidade Iaçu, tinha que se conseguir o refrigerante das crianças e o vinho dos adultos para acompanhar o almoço até um dia antes, pois todo o comércio fechava. Os bares não abriam; as imagens das igrejas ficavam cobertas por panos roxos e até em algumas casas não se ligava o som. Era o luto para se unir à memória da dor de Jesus. Ficávamos assim até a meia-noite do Sábado de Aleluia, ansiosas e ansiosos para ouvir o sino da igreja badalar e o padre anunciar, ao entrar na igreja escura, que ia tendo as luzes acesas à sua passagem, enquanto segurava a vela chamada de “círio pascal”, que Jesus havia ressuscitado. Era a boa nova, o fim da tristeza e de certa forma “a vitória da vida sobre a morte”.
Mas o que estamos vendo nessa Quaresma desse estranho e infeliz Brasil de 2021 é o que parece o triunfo da morte sobre a vida sem nenhum tipo de concessão àquela nossa antiga cultura de reverência ao luto, mesmo o que não é nosso. Pelo contrário: há brasileiros tripudiando de quem é vencido pela “maldita”, que debocha de quem está perdendo a batalha para um vírus altamente letal e contra o qual a ciência corre como é possível para encontrar soluções como a vacina. O mais trágico é que esses comensais da morte podem até não raciocinar em seu embotamento emocional, mas a covid-19 não perdoa sequer quem a auxilia a matar.