A substituição do monopólio da violência pelo monopólio da delinquência
A ideia de um Estado forte contra as demandas sociais e fraco em matéria de regulação econômica não nasce com os elogios de Hayek a Pinochet, mas com o jurista nazista Carl Schmitt, criador do conceito de “Liberalismo autoritário”, anacrônico do ponto de vista publicitário, mas firme e forte na prática.
A ideia de um Estado forte contra as demandas sociais e fraco em matéria de regulação econômica não nasce com os elogios de Hayek a Pinochet, mas com o jurista nazista Carl Schmitt, criador do conceito de “Liberalismo autoritário”, anacrônico do ponto de vista publicitário, mas firme e forte na prática
Pronto. Agora o Brasil se torna um país moderno, alinhado até o talo com os Estados Unidos. Como lá, aqui a violência vai virar direito, muito provavelmente o único. Vai ser fuzil na prateleira do supermercado, bala sem rastreamento em discussão de bar. Se a força deixar formalmente de ser monopólio do Estado (já encolhido a fiador da desigualdade), sua função daqui em diante será só administrar transgressão. E transgredir ele também, de qualquer jeito, toscamente, bem ao estilo desse governo gatonet, formado por gente que estava acostumada a extorquir comerciante, superfaturar botijão de gás e, de repente, se vê no controle do orçamento da oitava economia do mundo.
Difícil largar velhos vícios. O ex-PM, ex-miliciano e ex-laranja Fabrício Queiroz foi preso na casa do advogado de Flávio Bolsonaro. É a segunda vez que Queiroz some; da outra, ele estava em Rio das Pedras, berço do Escritório do Crime. Todo mundo sabe que Queiroz é aliado do presidente desde os anos 80, é envolvido com assassinato e, de acordo com a conveniência conjuntural, ora é amigo, ora é traidor aos olhos da família que por um desastrado conjunto de fatores (voto popular, complacência da mídia e dos liberais, xerifização made in USA do judiciário, incompetência traidora da centroesquerda, instrumentalização belicosa do WhatsApp…) ocupa o poder federal. Todo mundo sabe da dobradinha milícia/presidente. Mas para parafrasear o mandatário, a questão é: e daí? Não resta nada a esconder.
Imagine que eventualmente o assassinato de Marielle Franco desaguasse no planalto. Importante lembrar que as investigações atuais não apontam nessa direção, isso é só suposição. Mas imagine. Com a boca na botija, o presidente provavelmente diria algo como “e daí?” Não seria novidade para quem já ironizou milhares de mortes, defendeu legalização de milícia, tentou interferir em qualquer coisa, de comando da PF a bula de remédio. Fala pra mim: tem algo que Jair Bolsonaro tenha feito na vida que não fosse delinquência ou tentativa fracassada de delinquência?
Do planejado atentado a bomba à homenagem ao torturador Brilhante Ustra; do estouro recorde do cartão corporativo presidencial (Bolsonaro gastou R$ 6,2 milhões de janeiro a março de 2020, mais do que os oito anos anteriores somados) à inauguração de patamares inéditos de nepotismo… Parece que tudo que esse cara fez enquanto não estava dormindo ou numerando novos bandidos (zero um, zero dois, zero três) foi esse banditismo meia-boca. E por isso, Bolsonaro é a cara não só da elite brasileira, mas da elite no mundo.
Idealismo weberiano x brutalidade capitalista
O sociológo alemão Max Weber foi muito elegante em cunhar esse conceito de monopólio da violência no célebre discurso A política como vocação, proferido em Berlim, 1919. Mas a real mesmo é que o Estado liberal capitalista é e sempre foi uma ferramenta de administração da ilegalidade, não da legalidade – tanto do ponto de vista moral (escravidão, genocídio, pilhagem colonial etc.) quanto jurídico mesmo (do uso do fruto da já proibida mão de obra africana escravizada pelas metrópoles europeias em seus processos de industrialização à criação de mecanismos oficiais de lavagem de dinheiro, como os paraísos fiscais). Weber dizia que “O Estado é uma comunidade humana que pretende, com êxito, o monopólio do uso legítimo da força física dentro de um determinado território”.
Claro que as coisas têm de ser colocadas em contexto. Weber fala de forma comparativa com o período anterior da Europa ocidental, quando a violência era instrumento descentralizado de poder de “associações variadas” e cita a família como exemplo. Mesmo assim, tem muito erro aí na frase dele, né? Vamos lá, comunidade parte da ideia de comum. Se o poder de ocupar, gerir e influenciar o Estado é hierarquizado com base na propriedade privada, absolutamente nada que ele provém é comum a todos. Êxito é só um juízo de valor. Legitimidade é uma ideia que depende da existência do comum. A força do Estado não é só física; e sua jurisdição não se restringe a um “determinado território” pelo menos desde o império romano. A imposição da força é transnacional. Em botequês, a definição de monopólio da violência, essa noção fundadora do Estado nacional ocidental contemporâneo que a gente usa até hoje nos trópicos, é pobre, para dizer o mínimo.
Mas agora que aconteceu o alinhamento de planetas entre o pensamento e a representatividade das elites, dá para ver o quão pobre ela é. Bolsonaro tem o mesmo perfil psicológico de qualquer playboy que guarda dinheiro em paraíso fiscal. Os dois querem regras, mas só pros outros. Os dois querem apontar o dedo ao Adriano Imperador e ao Renan da Penha por “associação com o crime”, mas não veem problema nenhum em conviver com traficantes de órgãos, cafetões, torturadores e toda sorte de criminoso estrutural. Afinal, é esse tipo de gente que frequenta paraíso fiscal.
Neoliberais e fascistas são faces da mesma moeda. Só que um costumava matar limpinho, enquanto o outro sujava tudo. Agora, todos habitam o mesmo chiqueiro
Ambos… Ou melhor, a classe dominante no mundo inteiro, desde a primeira divisão social hierárquica, não quer o monopólio do “uso legítimo” da violência, mas o monopólio da delinquência. Eles querem o direito de transgredir qualquer regra de acordo com a conveniência, com a conjuntura. E é por isso que o neoliberalismo é a religião do andar de cima. É importante frisar que o neoliberalismo, apesar do nome, não tem suas raízes profundas no Iluminismo, mas no terceiro Reich. A ideia de um Estado forte contra as demandas sociais e fraco em matéria de regulação econômica não nasce com os elogios de Frederick Hayek ao ditador chileno Augusto Pinochet (“Prefiro uma ditadura liberal a uma democracia sem liberalismo”), mas com o jurista nazista Carl Schmitt, criador do conceito de “Liberalismo autoritário”, anacrônico do ponto de vista publicitário, mas firme e forte na prática.
Com essa raiz, resta alguma dúvida de que a melhor forma de gestão da pura selvageria econômica é a pura selvageria política? Não pode haver regras universais, se o único objetivo é a conformidade do oprimido. Neste sentido, o Estado deve ser flexível, ter um modus operandi para cada caso. Tal qual a milícia, ele precisa ser arbitrário. Se precisar disseminar o terror, que se faça. Se precisar de exército na rua, que venha. Se precisar descortinar a raiz nazista da organização econômica, que se faça. Isso não é monopólio da violência, isso é estabelecer o direito único e exclusivo da classe dominante de subverter toda e qualquer regra a todo e qualquer momento, com o objetivo único de manter sua própria condição de opressora. Se, no ideal de democracia, todo o poder emana do povo, no capitalismo, o poder legitima todo crime.
Como se conjuminam esses dois conceitos tão profundamente contraditórios? De nenhum jeito: eles são simplesmente inconciliáveis. Se existe algo de positivo na crueza opressiva que brotou da resposta do establishment à crise de 2008 (basicamente fazer a base da pirâmide pagar pela farra financeira do topo) é o fato de que o cinismo estrutural da democracia liberal ficou nu. E nu, o sistema político-econômico criado pela burguesia e aperfeiçoado pelo Terceiro Reich é mais parecido com Trump e Bolsonaro do que com Clinton e FHC. Neoliberais e fascistas são faces da mesma moeda. Só que um costumava matar limpinho, enquanto o outro sujava tudo. Agora, todos habitam o mesmo chiqueiro. O que significa que não se enfrenta o bolsonarismo sem enfrentar Paulo Guedes. Viu, frente ampla?