A responsabilidade pessoal de Braga Netto na crise
O Ministério da Defesa divulgou uma nota de repúdio às declarações do senador Omar Aziz (PSD-AM), presidente da CPI da Covid, de que “as Forças Armadas devem estar envergonhadas” com as lambanças praticadas por militares e civis no Ministério da Saúde.
O Ministério da Defesa divulgou uma nota de repúdio às declarações do senador Omar Aziz (PSD-AM), presidente da CPI da Covid, de que “as Forças Armadas devem estar envergonhadas” com as lambanças praticadas por militares e civis no Ministério da Saúde, sob a gestão do general Eduardo Pazzuello. A nota ameaça o próprio Senado, dado o entendimento dos comandantes militares de que o sentido de “vergonha” seria “culpa”.
O ministro da Defesa, general Braga Netto, exagerou na interpretação da frase meio mal ajambrada do senador, mas o seu exagero tem explicação. E ela não remete à institucionalidade das Forças Armadas, mas à atuação do general como chefe da Casa Civil, antes de assumir o Ministério da Defesa. Ele foi responsável pela nomeação dos funcionários militares e civis envolvidos em corrupção na compra de vacinas e de outros insumos necessários ao combate à epidemia do novo coronavírus.
Não há qualquer indício de que Braga Netto tenha envolvimento pessoal com a atuação de corruptos ou, muito menos, tenha se beneficiado disso. Mas, como chefe da Casa Civil, ele foi, também, o coordenador do “Comitê de Crise para Supervisão e Monitoramento dos Impactos da Covid-19”, o que inclui a atribuição de acompanhar a atuação dos que exercem cargos de confiança na área da saúde. Netto ocupou a função entre fevereiro de 2020 e março de 2021.
Nessa condição, participou de decisões sinistras, como a de se tentar alterar a bula da cloroquina para incluir prescrição contra a Covid-19, que é cientificamente descartada. Ele também foi responsável pela negligência na compra de vacinas da Pfizer. Tem sido citado por várias testemunhas na CPI da Covid, onde também deverá depor.
Netto não quis se transferir para a reserva enquanto exercia funções eminentemente políticas no Palácio do Planalto. Foi um operador do acordo do governo com o “Centrão” e de nomeações de militares e de civis para funções de confiança. Compactuou com a atitude negacionista do presidente Jair Bolsonaro diante da epidemia e, mesmo depois de assumir o Ministério da Defesa, compareceu a uma manifestação antidemocrática na Esplanada dos Ministérios.
De fora para dentro
Se levarmos em conta sua carreira militar, seria até esperado que Braga Netto pudesse chegar ao comando do Exército e ao Ministério da Defesa. Mas a sua passagem, na condição de general da ativa, por funções políticas, trouxe, de fora para dentro do Ministério da Defesa, as indiossincrasias políticas de um governo sectário, incompetente e decadente. E não há como abstrair a influência dessa circunstância na interpretação extrapolada que a nota deu à declaração de Aziz.
Além disso, a nota extrapola o papel das Forças Armadas, colocando-as como juízas – que não são – do que é, ou não é, ameaça ao regime democrático, atribuindo-se um protagonismo que não é constitucional, pois a sua atuação na defesa da ordem se faz por demanda dos poderes constituídos. E o presidente da República não pode valer-se delas para ameaçar os demais poderes e, muito menos, podem elas substituir a soberania popular na definição dos rumos políticos do país.
A nota provocou reações, mais ou menos diretas, dos presidentes do Supremo Tribunal Federal (STF), Luiz Fux, do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), e da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), além de várias organizações da sociedade civil. Na terça (13), a Câmara aprovou um requerimento convidando Braga Netto para explicar a nota aos deputados, em sessão plenária.
Após a divulgação da nota, Braga Netto e os comandantes das Forças Armadas, além de outras autoridades, compareceram a uma estranha reunião no Palácio do Planalto, convocada por Bolsonaro, para avaliar os dois anos e meio do governo. Porém, o que se apresentou aos participantes foram cenas das recentes manifestações contra o governo, em que apareciam bandeiras com o símbolo comunista, de uma foice com um martelo, para alardear a iminência de um suposto “retorno dos comunistas” ao governo.
Houve, ainda, uma entrevista ameaçadora e infeliz do comandante da Aeronáutica, Carlos Baptista Júnior, dizendo que “não haverá 50 notas”, para sugerir que, em vez de falarem, os militares poderiam agir contra o Senado. Ele tentou justificar a nomeação de militares despreparados, que, por serem “de confiança”, poderiam preencher funções civis independentemente da respectiva formação, de acordo com os desejos do presidente.
Nesta semana, começou a tramitar na Câmara um projeto de decreto legislativo para sustar um decreto do Bolsonaro que liberou a permanência de oficiais, por tempo indeterminado, em cargos de confiança na administração federal. Hoje, a oposição conseguiu reunir 189 assinaturas, 18 a mais do que o mínimo necessário, para iniciar o trâmite de uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que estabelece condições para que militares possam exercer funções de natureza civil na administração pública. De acordo com o texto, aqueles com menos de 10 anos de serviço deverão se afastar da atividade. Já aqueles com mais de uma década servindo Marinha, Exército ou Aeronáutica terão de passar para inatividade, de forma automática, no ato da posse.
Uma pesquisa do DataFolha, divulgada segunda-feira, apurou que 58% dos brasileiros consideram que os militares não devem ocupar cargos civis e 62% acham que eles não devem participar de atos políticos.
Bolsonaro em queda
As pesquisas de opinião são unânimes em apontar que o apoio ao presidente se restringe a um quarto da população e que a sua rejeição ultrapassa a metade. Se as eleições presidenciais fossem hoje, provavelmente ele seria derrotado no primeiro turno. Essa situação não tem a ver com comunismo, ou anti-comunismo, mas com a péssima avaliação do povo. O governo não tem projetos, obras ou realizações, e o seu legado consiste na promoção de conflitos, na deterioração do Estado, da econonomia e do meio ambiente, e no acúmulo inédito e impressionante de mais de meio milhão de mortes evitáveis.
Braga Netto deveria reconhecer que é Bolsonaro, e não Aziz, quem promove, o tempo todo, a associação do seu governo com as Forças Armadas enquanto instituição. É ele que as utiliza simbolicamente, de várias formas, para suprir as suas insuficiências políticas. Assim como deveria reconhecer a sabedoria dos seus pares que lhe recomendaram o caminho da reserva para exercer funções políticas. A natureza da crise que assola o governo, em vista da sua trajetória pessoal heterodoxa, recomenda a Braga Netto muita reflexão nesta hora.
Bolsonaro percebe a aproximação da derrota e conspira pelo auto-golpe, tentando usar as Forças Armadas como instrumento dessa insanidade, mesmo estando o país em frangalhos e politicamente isolado do resto do mundo. Uma quartelada não se sustentaria no atual contexto interno e externo.
A função de ministro da Defesa é política, mas a função do Ministério da Defesa é institucional. Políticos de vários matizes foram ministros e não comprometeram a sua função institucional. Abstiveram-se de declarações políticas a favor dos governos a que serviram e de editar notas com ameaças aos demais poderes e à democracia. Quis o destino deixar Braga Netto, um general, na posição de fazer uma escolha potencialmente fatal.