A resistência dura e vitoriosa dos Ashaninka do Rio Amônia
Em 2020, não houve casos de infecção por Covid-19 na aldeia Apiwtxa. A estratégia de enfrentamento à pandemia dos Ashaninka de lá combinou medidas de isolamento físico com rituais e terapias preventivas tradicionais.
Em 2020, apesar da pandemia, os índios Ashaninka do Rio Amônia, no Acre, enfrentaram também as eleições municipais. Isaac, filho de Antônio Pianko, fundador e principal liderança da aldeia Apiwtxa, na Terra Indígena (TI) Kampa do Rio Amônia, reelegeu-se prefeito de Marechal Thaumaturgo, com 54% dos votos. O município acreano, situado na fronteira com o Peru, tem 20 mil habitantes, mil dos quais são Ashaninka.
Isaac manteve-se à frente da prefeitura, apesar de integrar uma minoria étnica. A realização de casamentos entre indígenas e não indígenas pode ajudar a explicar por que a influência cultural e política dos Ashaninka vai além dessa condição minoritária.
No segundo mandato, a prioridade da administração será fortalecer as cooperativas comunitárias que oferecem serviços e produtos sustentáveis e as suas respectivas cadeias econômicas. O prefeito prefere investir no desenvolvimento da economia dos povos da floresta e na autonomia dos produtores, em vez de reforçar dependências por meio de programas de renda mínima.
A comunidade Ashaninka já começou a receber, em parcelas, a indenização que obteve de um acordo judicial histórico fruto de um processo movido contra Oleir Cameli, ex-governador e pai do atual governador do Acre, Gladson Cameli, por exploração ilegal de madeira no território indígena. Os Cameli tiveram que passar a respeitar os Ashaninka, dos quais foram inimigos no passado e com os quais mantém divergências políticas e de visão de futuro.
Em 2020, não houve casos de infecção por Covid-19 na aldeia Apiwtxa. A estratégia de enfrentamento à pandemia dos Ashaninka de lá combinou medidas de isolamento físico com rituais e terapias preventivas tradicionais.
Porém Antônio Pianko, sua esposa e alguns filhos vieram à cidade para ajudar a campanha eleitoral de Isaac e acabaram contraindo o vírus. A situação de saúde deles ainda enseja preocupação. O patriarca continua hospitalizado em Cruzeiro do Sul, mas já saiu da UTI. Todos permanecem fora da aldeia, para não fragilizar o isolamento da área, até agora bem-sucedido.
Restauração florestal
Os Ashaninka do Rio Amônia têm experiências muito interessantes na restauração florestal de áreas degradadas. Quando foi demarcada a TI, havia nela uma área anteriormente desmatada para a implantação de pastagem, que foi restaurada para sediar a aldeia Apiwtxa, transferida para lá.
A iniciativa foi feita com espécies nativas, selecionadas da biodiversidade regional pelo gosto e pelo uso que os Ashaninka fazem delas. Apenas em locais específicos foram restauradas matas mais fechadas. O ambiente predominante é de um bosque amazônico antrópico. Os Ashaninka preferem viver mais dispersos, em habitações tradicionais espalhadas pelas veredas desse imenso bosque. É de encantamento o cenário que se vê, assim que se transpõe o cânion de barro às margens do Amônia.
Os Ashaninka também compraram e restauraram, com doações internacionais, uma fazenda de gado localizada bem em frente à cidade, do outro lado do Rio Juruá (Thaumaturgo está onde o Amônia deságua no Juruá). Instalaram ali uma pousada e um centro de formação, que exerce efeito demonstrativo e influência cultural sobre a população não indígena. É lá que, agora, estão isolados os Ashaninka afetados pela Covid-19, até que possam retornar em segurança para sua aldeia.
Há 30 anos, quando conheci Antonio Pianko e seus filhos, a TI não estava demarcada, Thaumaturgo era dominada pelos madeireiros e o Rio Amônia era uma rota sob controle do narcotráfico. Os Ashaninka viviam de um lado para outro da fronteira, fugindo da violência do crime organizado, do lado brasileiro, e dos recrutamentos forçados promovidos pelo Sendero Luminoso, um grupo guerrilheiro peruano.
A demarcação da TI Kampa do Rio Amônia empoderou os Ashaninka, estabilizou a situação da população, que voltou a crescer. Reforçou a sua política de alianças com outros povos e comunidades tradicionais. Permitiu ao Estado brasileiro exercer um melhor controle sobre aquele ponto da fronteira, reduzindo os ilícitos, pelo menos nas áreas protegidas. Projetos indígenas de desenvolvimento sustentável multiplicaram-se, trazendo recursos para a região. A correlação de forças políticas foi mudando em Thaumaturgo. Os Ashaninka vão governá-la por mais quatro anos.
Essa experiência não é mecanicamente transplantável para outras situações locais, mas é muito inspiradora do que o Brasil pode ser, se for revolvido, amorosamente, de baixo para cima. Os Ashaninka equilibram o jogo plantando esperança!