A queda de braço entre o ENEM e a Escola Sem Partido
A beleza dessa prova é não existir um conteúdo específico por estudar, mas sim exigir o desenvolvimento de habilidades interpretativas comprometidas com um projeto democrático de sociedade.
Pra quem tava na expectativa de ver como o ENEM reagiria à decisão judicial que considerou inconstitucional a norma que zerava redações que desrespeitassem os direitos humanos, decisão judicial referendada pela própria presidenta do STF Cármen Lúcia, não houve decepção: não podendo existir essa norma em separado, ela foi sutilmente inserida dentro da proposta de redação (“redija texto dissertativo-argumentativo em modalidade escrita formal da língua portuguesa sobre o tema ‘Desafios para a formação educacional de surdos no Brasil’, apresentando proposta de intervenção que respeite os direitos humanos”), o que torna o desrespeito aos direitos humanos fuga do tema.
Xeque!
Isso só mostra o quanto o ENEM, entendendo o papel que seus conteúdos têm na construção dos currículos de norte a sul do Brasil, quer fazer resistência frente a discursos e ações que tentam impedir que um dia a escola possa ser, não um espaço de reprodução de opressões, como é hoje, mas sim de transformação da sociedade.
Questões que discutem pobreza, racismo, violência doméstica, imposição de modelos nocivos de feminilidade, variação linguística (inclusive cobrando conhecimento de vocabulário típico das regiões Norte e Nordeste, como no caso da questão sobre “gerimum com g”), questões que propõem um outro olhar sobre materiais publicitários, mostrando a necessidade de aprender a lê-los nas entrelinhas, questões que avaliam a capacidade do estudante de relacionar textos de gêneros diversos e várias procedências, de lidar com o português de outras épocas e regiões… questões, em suma, que requerem do aluno habilidades sofisticadas sim de interpretação, mas de uma interpretação engajada, as habilidades talvez de que mais necessitemos para enfrentar os pequenos golpes que nos dão dia após dia na mídia, na promulgação de leis, nas declarações oficiais.
Saber ler os experimentos verbais de uma Lispector, de um Machado, mas também de um Racionais MC’s, ser capaz de analisar obras variadas de artistas plásticos (inclusive um grafite que traz marcas da xilogravura nordestina e um quadro que dialoga com signos de religiões afrobrasileiras), mas também produtos da mídia e da indústria cultural, discutir as potencialidades e riscos trazidos pela internet, problematizar a noção de “português certo”, pensando, ao invés disso, em português adequado ao contexto: a beleza dessa prova é não existir um conteúdo específico por estudar (o que dificulta engessamentos e padronizações do ensino), mas sim exigir o desenvolvimento de habilidades interpretativas comprometidas com um projeto democrático de sociedade.
Mas a cereja do bolo foi a redação, como tem sido praxe nos últimos anos, por exemplo nos temas de 2016, “caminhos para combater a intolerância religiosa / racismo” (nesse ano, foram duas aplicações do ENEM), com só 77 alunos tirando a nota máxima, e de 2015, “persistência da violência contra a mulher”.
O tema desse ano, por sua especificidade, “desafios para a formação educacional de surdos”, pegou desprevenido inclusive quem se acreditava por dentro dos assuntos “caíveis” e abordou um debate que mesmo a esquerda tem se esquivado de fazer.
E mais: o fez não de forma genérica, abstrata, mas cobrando um mínimo de intimidade do aluno com a temática e um posicionamento condizente com a defesa dos direitos da população surda.
Não faz dois anos que o STF decretou que escolas privadas não poderiam se eximir de criar um espaço acessível para alunos com deficiência nem cobrar matrícula ou mensalidade a mais desses alunos, práticas que tentavam empurrá-los para a escola pública ou permitir que ficassem nas particulares apenas os de família mais abastada, mas a redação, se começasse dessa forma, ainda assim precisaria enveredar pela realidade específica das pessoas surdas, discutindo a necessidade da Libras ser língua oficial do Brasil não só no papel (aliás, você sabia que o Brasil tem duas línguas oficiais, português e Libras?) mas também no cotidiano das escolas, com cada vez mais alunos, sejam surdos ou ouvintes, ganhando fluência no idioma desde a infância (pode-se argumentar, por exemplo, que o bebê desenvolve suas habilidades motoras antes do aparelho fonador, o que lhe permitiria aprender Libras antes mesmo do que o português, já desde as creches e berçários), com alunos, funcionários e professores ouvintes não fluentes em Libras entendendo como funciona, de fato, a leitura labial, com a comunidade escolar como um todo entendendo o seu papel na construção de uma educação de igual qualidade tanto em Libras quanto em português.
Falta ainda bastante coisa no ENEM, ô se falta, maior presença de mulheres e pessoas negras como referências e o escancaramento de aspectos racistas e machistas presentes em muitas das citações, por exemplo, mas é preciso reconhecer que ele não se curvou aos ditames da bancada fundamentalista e da Escola Sem Partido e que, com isso, segue impondo um exame que oriente os currículos de todo o país a se pautarem pela defesa radical dos direitos humanos.
Eu, como travesti professora de literatura, digo: dá gosto dar aula pro ENEM!