A natureza da saudade que nos alimenta na quarentena
Estamos na terceira semana de quarentena. A graça que poderia haver em passar mais tempo em casa do que o comum, cuidando dela mesma, dos filhos, das leituras que ficavam para depois. Agora, a rotina de prisão domiciliar pesa mais, já se fez.
Estamos na terceira semana de quarentena. A graça que poderia haver em passar mais tempo em casa do que o comum, cuidando dela mesma, dos filhos, das leituras que ficavam para depois. Agora, a rotina de prisão domiciliar pesa mais, já se fez. O abastecimento de casa é um risco, a tendência é comer demais e a represa das energias e necessidades vai chegando ao seu nível máximo. Nessa situação, estamos tão protegidos quanto possível da contaminação pelo coronavírus e, da mesma forma, fazemos o que podemos para restabelecer as condições sanitárias, mas ficamos vulneráveis a sentimentos perturbadores que afloram de forma intensa em condições de isolamento.
Quero resgatar a saudade do meio desse turbilhão. Sim, porque a pior de todas as limitações da quarentena é a falta que sentimos das pessoas que amamos e com quem convivemos. Não é exatamente a escassez de paisagens que nos assalta, mas a ausência de pessoas nelas, nem é a distância do escritório que incomoda, mas a falta do calor e do afeto dos colegas de trabalho.
Nesses tempos, muito diversas são as modalidades possíveis de saudades. A saudade irrecuperável dos que perdem a vida na epidemia, a angustiante, de quem tem entes queridos contaminados ou internados, a preocupante, relativa aos profissionais de saúde e outra pessoas que conhecemos e que estão na linha de frente do combate à epidemia.
Estamos vendo a falta que fazem pais, filhos e irmãos que estão distantes, amigos, parceiros e aliados, que agora não podem confraternizar como antes. Saudade dos que lutam juntos, dos que nos prestam serviços e ofertam produtos que precisamos.
Grita alto a saudade entre amantes separados pela epidemia, exacerbada como a expressão de mil poetas juntos. Dos que querem muito, mas não podem se ver, abraçar, beijar, trocar afetos com corpos e sentimentos entrelaçados até compartilhar o ápice da satisfação. Ai que saudade!
Agora já falo de saudades que têm horizontes. Não da morte ou da eterna separação, mas as que podem e devem virar vontades e acontecer de verdade. Vontade de rever, de reatar, de reagir, de amar plenamente outra vez. Vontade de trabalhar, de agitar, de derrubar o ditador de plantão. Vontade de viver, de vencer, de fazer vibrar e transformar o mundo!
Ainda não sabemos por quanto tempo mais ficaremos em quarentena. Mais um mês ou dois? Com a ansiedade de todos já aguçada, não será fácil. Não há como eliminar tristezas, revoltas e fantasmas que se escondem em nós e se tornam mais presentes em momentos de reclusão. Mas não custa tentar selecionar e priorizar as saudades portadoras das vontades que virem ações assim que quarentena acabar.
Considerem que a saudade seria muito maior, como já deve ter sido em outra épocas, se não usássemos celulares, WhatsApp e outros meios de comunicação. Podemos, com eles, atenuar a saudade, o sofrimento e o impacto da distância física entre nós. É a comunicação que pode, mesmo sob isolamento, ir tecendo as nossas vontades e preparando opções de ações para o momento seguinte. Comunicação à distância é uma forma de saudade militante.
Noves fora o sofrimento, nós podemos, nas próximas semanas, reunir as saudades do tipo “peraí que eu já estou voltando”, formando vontades coletivas do tipo “vamuquevamu”, para sairmos com tudo ao final da quarentena, para vermos e fazermos o que mais nos tenha faltado, nos amarmos loucamente, mas também para partirmos para cima dos poderes transviados que ainda dominam e infelicitam esse nosso mundo lindo.
Termino como Caetano termina:
“Amanhã
Mesmo que uns não queiram
Será de outros que esperam
Ver o dia raiar
Amanhã
Ódios aplacados
Temores abrandados
Será pleno, será pleno!”