A não-moda brasileira
O novo mundo já é, e apresenta o novo com formas reais de integração de diferentes fontes criativas, com o entendimento que moda é capaz de humanizar a relação entre roupa e consumidor.
Começo nossa conversa dessa vez perguntando: agora que o mundo inteiro é carregado em um aparelho móvel, e o tempo já quase passou, onde estão as distâncias? O que nos diferencia? Onde colocamos os nossos desejos?
O alemão karl Lagerfeld – designer superpoderoso da marca Chanel -, afirmou que “a moda é efêmera, perigosa e injusta”. Karl disse isso porque pertence ao velho mundo, aquele mundo que já não nos serve, não nos interessa mais.
O novo mundo já é, e apresenta o novo com formas reais de integração de diferentes fontes criativas, com o entendimento que moda é capaz de humanizar a relação entre roupa e consumidor. E não estou falando de moda romântica não. Nem de peças com formatos nunca vistos.
Falo de roupas que transmitem conceitos, geram sensações; moda reflexiva, moda consciente, moda politizada.
No Brasil, sempre fomos reféns de estereótipos europeus. Nossas roupas eram feitas por nós, mas não eram pensadas por nós. Definições ainda estão incorporadas ao nosso imaginário, mas já bem sabemos que moda não tem fronteiras, e temos aprendido a celebrar a liberdade criativa, e a perceber a moda como o diálogo permanente entre todas as culturas. Estamos atendendo aos nossos anseios, satisfazendo os nossos desejos, definindo os nossos formatos, e nossa imagem final está ficando cada vez mais bacana.
A geração contemporânea de designers de moda brasileiros deu um salto estético, e se apresenta com uma força nobre, cheia de valores fundamentais que já estão movendo a sociedade. Falo dos conceitos de colaboração, interação com o diverso, integração com a natureza, visual personalizado.
Através de suas criações, dão novos sentidos para materiais, reconceituam formas e proporções convencionais, resgatam suas histórias, comunicam suas memórias, reúnem diferentes saberes e fazeres tradicionais com novas linguagens, enfatizam seus costumes, fomentam nossa cultura popular, e fazem dinheiro a partir das próprias ideias. A isso tudo, dou o nome de “a não-moda brasileira”, porque posso, com muita certeza, afirmar que nos últimos tempos ganhamos um novo sopro de vida. Já anda pelas ruas uma moda que não é mais copiada, intimidada, dita sem identidade.
O jornalista e idealizador do evento Casa de Criadores, o maior evento de novos nomes da moda brasileira, André Hidalgo, concordou comigo e disse mais:
“Se hoje já podemos dizer que existe uma moda genuinamente brasileira, é muito graças a essa nova geração de estilistas e profissionais que fazem questão de construir ativamente essa identidade. Fico muito feliz em estarmos vivendo um momento tão bacana da moda brasileira, apesar de todas as adversidade”.
O 43º Casa de Criadores aconteceu esse mês em São Paulo, no MAC-USP, e mostrou lindamente que a evolução com prosperidade é um exercício além-estética, com muito de ética socioambiental, afeto com o próximo, e que as relações de negócios da moda têm cada vez mais alma.
Durante o evento, algumas marcas mostraram ter a genialidade de captar o essencial e torná-lo acessível, como a Brechó replay, que discutiu o bullying, a Heloisa Faria que tratou sobre sororidade [união e aliança entre mulheres, baseado na empatia e companheirismo], e a marca Också que reforçou sua proposta pró-diversidade.
O estilista Weider Silveiro apresentou uma coleção-protesto, denunciando o tratamento dado, pelos familiares e governos, aos LGBTs em situação de rua, grupo crescente em São Paulo
“Não vendo isso como uma situação ideal, mas já que elas estão nesta situação, qual seria a roupa, que roupa seria essa? Então eu faço uma coleção absurdamente plural no sentido de todos os estilos. São vários tipos, como são as pessoas, mas tudo com um grande perfume de utilitário”, disse Weider.
Quando alguém se posiciona sobre o que não concorda, se posiciona em favor de si mesmo. E o ganho é geral. Sabendo disso, o estilista Fernando Cozendey fez um passeio íntimo sensacional e enfrentou suas emoções publicamente, contando sobre um abuso sexual sofrido quando criança.
Já Isaac Silva fez uma intervenção entre as forças do ser íntimo com o ser divino: “Minha coleção é sobre Xica Manicongo. Ela foi a primeira travesti não-índia do Brasil, escravizada de um sapateiro de Salvador em 1591, símbolo de luta e resistência de uma época em que negar o sexo era tido como heresia e digno de punição”, contou em entrevista coletiva o estilista.
Porque nossas convivências são ricas trocas de competências, a marca Angela Brito abordou em sua coleção Cabo Verde e suas memórias afetivas, cheias de histórias místicas e peculiaridades múltiplas, sobre essa que é sua terra natal.
Experimentar o experimental continua sendo a essência da moda, e a Ken-gá, marca de beachwear [ou bitchwear com se intitulam, porque o nome Ken-gá deriva de quenga] “gritou” na passarela empoderamento, fervo e divas inspiração, e se apresenta: “A Ken-gá é uma marca empoderadora que quer subverter rótulos e estigmas, uma marca em que todx podem ser maravilhosx”. Totalmente politizada, a Ken-gá imprime brincos com frases tipo ‘fora temer’, ‘preta’, ‘sai machista’.
Olhar pro mundo mas com o coração dentro de nós mesmos, – o que era incomum no métier nacional, – foi a sacada sensacional do estilista Rafael Caetano, que criou sua coleção com o olhar voltado pro bairro gay de Madri, mas mesclou suas inspirações com a cultura GLBT do bairro Frei Caneca de São Paulo.
Alex Kazuo merece ser citado, porque simplesmente apresentou uma coleção sem tema, provando que regras, mais do que nunca, não cabem no mundo da moda. Além disso, usou tecidos reciclados Ecosimple, tecidos de descarte e sobras de couro.
Transmitir a essência das tendências passadas sem caricaturá-la é um dos grandes desafios da moda atual, e a coleção de Rober Dogani trouxe os anos 80 pra 2018 com muitos acertos.
É isso. Que a nossa inspiração não conheça fronteiras, pois o nosso universo diverso é revolucionário. Nosso mundo da moda é o nosso lugar de fala. Vai Brasil.