A mensagem das eleições na França à esquerda
A eleição na França deixa muitos ensinamentos para a esquerda no mundo e no Brasil
Por Igor Felippe Santos
A vitória da Nova Frente Popular no segundo turno das eleições legislativas na França representou uma demonstração de força e a retomada da esperança da esquerda no mundo. O resultado surpreendeu, sobretudo, aqueles que consideram as forças populares incapazes de enfrentar a extrema-direita e se restringem à tática de alianças com a direita nos processos eleitorais e submissão ao programa neoliberal nos governos.
A frente popular, que conta com o Partido Socialista, o Partido Comunista e os Ecologistas, é liderada pelo movimento de Jean-Luc Mélenchon, o França Insubmissa, que desponta como a principal força da esquerda. Isso deve nos dizer algo. Mesmo diante do perigo do avanço da extrema-direita, a esquerda francesa teve a firmeza de manter seu projeto com autonomia, construir uma ampla articulação das forças populares, atuar em unidade de ação com as forças de centro-direita sem perder sua identidade e fazer a disputa dos eleitores insatisfeitos com a condução política e econômica do governo Emmanuel Macron.
O debate sobre a tática para enfrentar as correntes neofascistas que emergiram no último período deve ir além das pesquisas de opinião dentro de uma análise puramente eleitoral, porque um dos fenômenos que marcam a fase atual do capitalismo é a crise das democracias liberais.
Um relatório divulgado pela Universidade de Cambridge em janeiro de 2020 apontou que o índice de insatisfação com o sistema democrático alcançou a marca recorde de 57,5%. O índice aumentou quase 10% desde a década de 90 e chegou ao nível mais alto em 25 anos, quando a série “Global satisfaction with democracy” começou a ser realizada em 154 países. O relatório aponta como razões a crise econômica e a falta de resposta dos governos para problemas econômicos e sociais.
A ascensão da extrema-direita é um dos efeitos mais visíveis da crise do capitalismo sob o neoliberalismo. Correntes neofascistas conquistaram governos e têm crescido nas eleições para o Parlamento na Europa, nas Américas e na Ásia. Essa correntes extremistas de direita têm se colocado na cena política como uma força anti-sistêmica, com uma crítica radical ao modelo político, econômico e social que caracteriza a fase atual do capitalismo. Embora não atuem na prática contra o sistema, têm um discurso de mudança forte e direto que captura as insatisfações.
As políticas neoliberais tiveram efeitos perversos por todo o mundo, com a ampliação substancial da concentração de renda, enfraquecimento do Estado social, as privatizações e reformas fiscais, a desregulamentação do sistema financeiro global, a diminuição do patamar de crescimento da economia com medidas de austeridade e o corte de direitos trabalhistas e previdenciários.
Um relatório da Oxfam publicado no ano passado aponta o resultado do receituário neoliberal: está em curso um crescimento jamais visto da desigualdade social no mundo. A fatia de 1% mais ricos do mundo ficou com 2/3 da riqueza gerada no período, em torno de US$42 trilhões, entre 2020 e 2022. Esse montante equivale a seis vezes mais do que o total arrecadado por 90% da população global (7 bilhões de pessoas) no mesmo período. Cada bilionário ganhou US$1,7 milhão para cada dólar obtido por uma pessoa que está entre os 90% mais pobres do mundo.
A direita tradicional, principal expressão política das instituições liberais, empunhou a bandeira do neoliberalismo e prometeu que a “modernização” da economia com a globalização capitalista geraria bem-estar para a população de seus países. Depois de quatro décadas, carrega nas costas a culpa pelo fracasso neoliberal. Até mesmo partidos da social-democracia que abdicaram do seu programa saíram desgastados, perderam relevância ou tiveram que se renovar.
A extrema-direita tem avançado, justamente, no espaço aberto pela desmoralização da direita e do sistema político-institucional que sustenta as democracias liberais.
Assim, o fracasso do neoliberalismo se transmutou em crise da democracia liberal. São dois lados da mesma moeda. Não há mais expectativa de um futuro melhor com esse modelo econômico e político. Diante disso, segmentos cada vez maiores da população têm colocado sua esperança em correntes políticas que façam uma crítica radical ao estado atual das coisas, à direita ou à esquerda.
A construção de frentes anódinas de forças muito heterogêneas sem um programa claro e firme de oposição ao neoliberalismo pode até cumprir um papel em uma disputa eleitoral determinada, diante da ameaça do neofascismo, mas não tem condições de contagiar a sociedade e construir uma força política para enfrentar o neoliberalismo. O caminho para derrotar a extrema-direita é combater o neoliberalismo e o sistema político-institucional que legitima seus retrocessos, apontando como perspectiva de futuro a construção de uma nova sociedade.
O resultado das eleições na França deve ser analisado a partir da perspectiva da crise da democracia liberal, da desmoralização do “centro” (ou melhor, da direita tradicional) e da consolidação da polarização da extrema-direita com a esquerda.
O presidente da França, Emmanuel Macron, sofre as consequências do programa neoliberal que está implementando. Sofreu um grande desgaste ao promulgar a reforma da Previdência no ano passado, depois de uma série de protestos contra o aumento da idade mínima para a aposentadoria. Para aprovar a mudança sem o aval dos deputados, ele teve que recorrer a um artigo de exceção da Constituição.
Nesse cenário, tanto a coalizão de esquerda, reunida na Nova Frente Popular, como a extrema-direita, do campo da Reagrupamento Nacional, que fazem oposição ao atual governo, tiveram um crescimento expressivo, ganharam um peso maior na luta política e devem ocupar a cena política.
A Coalizão Juntos, de direita, liderada por Macron, perdeu 82 cadeiras e deixou de ser a maior força política do país. Ficou atrás da Nova Frente Popular, que cresceu 33 cadeiras, terminando o pleito com 182 representações. Existe um dado relevante nesse processo: embora o Reagrupamento Nacional tenha ficado em terceiro lugar, com 143 cadeiras, ganhou 55 cadeiras em relação ao último pleito. Marine Le Pen, destacada líder dos extremistas, declarou que a vitória deles foi apenas adiada, o que parece ser a tendência.
O elemento novo que mexeu com a sociedade, aumentou o interesse da população e levou a um alto comparecimento eleitoral no patamar de 60%, o mais alto desde 1981, é a entrada na disputa de um bloco de unidade de esquerda, liderado pela França Insubmissa, que faz oposição às reformas neoliberais de Marcron e combate a extrema-direita.
A eleição na França deixa muitos ensinamentos para a esquerda no mundo e no Brasil. As forças populares precisam ter coragem de se unir, apresentar suas ideias, seu programa e sua simbologia. Nada mais simbólico do que os jovens franceses comemorando e entoando A Internacional em praça pública depois da vitória nas eleições.
A constituição de frentes amplas com forças de esquerda e direita deve ter objetivos claros e tempo definido para impor derrotas à extrema-direita sem confundir a sociedade. Mais do que palavras, as forças populares devem levar a cabo o que prometem quando chegam ao governo e implementar o programa apresentado nas eleições, enfrentando os interesses da classe dominante, para mobilizar a sociedade e avançar com um projeto de superação do neoliberalismo. O povo quer mudanças reais e expressa sua vontade ao abandonar projetos moderados. Resta saber se a esquerda entenderá a mensagem.