A máquina que forja a democracia está sendo golpeada: o STF discute a militarização das escolas no Brasil
A educação militarizada representa um retrocesso, impondo uma visão autoritária que exclui e reprime em vez de promover a inclusão e o desenvolvimento integral.
No dia 23 de outubro, ocorreu uma audiência pública no Supremo Tribunal Federal (STF), sob a coordenação do ministro Gilmar Mendes, para discutir as Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs) n. 7.662/SP e n. 7.675/SP. Essas ações questionam a militarização das escolas públicas no Brasil, um tema que levanta discussões fundamentais sobre os princípios democráticos e o direito à educação. A rede da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, que já trabalha no tema da militarização há anos, esteve presente nos debates, levando uma série de denúncias e reflexões críticas, a despeito de ter tido, juntamente com a Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE) e a União Brasileira de Estudantes Secundaristas (Ubes), seu pedido de participação direta negado por Gilmar Mendes. Participaram ativamente da audiência entidades e pessoas que compõem não somente o Comitê Diretivo como a rede da Campanha*.
A educação militarizada, como apontado por diversos especialistas, vai contra os princípios democráticos da Constituição de 1988 e representa um retrocesso no direito à educação, impondo uma visão autoritária que exclui e reprime em vez de promover a inclusão e o desenvolvimento integral.
É fundamental refletir sobre esse processo à luz do que Anísio Teixeira, um dos maiores educadores brasileiros, afirmou: a escola pública deve ser a “máquina que prepara as democracias”. O debate sobre a militarização das escolas é, na verdade, um debate sobre democracia. A educação pública, laica e inclusiva é a base para a construção de uma sociedade democrática e plural. Militarizar as escolas é comprometer essa construção, substituindo o espaço de debate e aprendizado por um regime de controle e autoritarismo. O STF tem a responsabilidade de defender o futuro da educação no Brasil, assegurando que a democracia prevaleça nas nossas escolas. E isso só será feito com a garantia de desmilitarização.
Audiência no Supremo
Durante a audiência pública no STF, importantes vozes críticas à militarização se manifestaram. Lucas Sachsida, Coordenador da Comissão Permanente de Educação do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), enfatizou que a militarização fere o princípio da gestão democrática da educação, enquanto Élida Graziane Pinto, procuradora do Ministério Público de Contas de São Paulo, destacou que a gestão das escolas militarizadas desvia recursos destinados à educação para finalidades alheias ao seu propósito constitucional. Salomão Ximenes, professor da UFABC e representante da Fineduca, reafirmou que a militarização das escolas não é defendida por nenhuma instituição de pesquisa educacional séria no Brasil e no mundo e é uma problemática em termos de financiamento da educação.
Miriam Fábia Alves, da ANPEd, alertou para o impacto desse modelo nas gestão democrática e prática pedagógica, e Catarina de Almeida Santos, da RePME, criticou a descaracterização das escolas públicas civis sob a gestão militar. Fernando de Araújo Penna, do Observatório Nacional da Violência contra Educadoras e Educadores (ONVE), rebateu a ideia de que as escolas militarizadas oferecem uma gestão democrática, argumentando que a adesão forçada ao modelo militar subverte os princípios acadêmicos de gestão democrática.
Fernando Cássio, da Rede Escola Pública e Universidade (REPU), destacou que o programa de militarização das escolas em São Paulo busca criar uma sub-rede de ensino, evidenciando que essa política exclui ativamente os estudantes mais vulnerabilizados. Segundo ele, não há muita diferença prática entre a militarização e a privatização escolar, pois ambas rompem com o princípio de universalidade do acesso e com a garantia de condições de permanência na escola pública. Além disso, criticou a falta de diálogo com a sociedade sobre a transformação dessas escolas.
Bárbara de Oliveira Lopes, da Ação Educativa, ressaltou que o modelo militarizado é incompatível com o papel social da escola de enfrentamento das desigualdades e valorização das diversidades. Ela sublinhou a importância de ouvir os jovens, que são titulares de direitos, e denunciou a imposição de uma ideologia militar que, em um país construído sobre racismo e sexismo, reforça as hierarquias e padronizações. Deborah Duprat, do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim), complementou que as escolas militarizadas introduzem visões típicas da caserna, que são incompatíveis com a dimensão democrática da educação, transformando a escola de um espaço de pluralidade em um local de controle e adestramento. Denise Carreira, representante da Faculdade de Educação da USP, reforçou que a militarização atenta contra os princípios da educação pública e dos direitos humanos, destacando a censura a conteúdos críticos.
Denúncias, casos e mobilizações pelo Brasil
Desde 2018, a Campanha publicou seu primeiro mapeamento e posicionamento sobre a militarização de escolas no Brasil. À época, constatamos que, de 2013 a 2018, o número de escolas estaduais geridas pela Polícia Militar havia aumentado de 39 para 122 em 14 estados – um crescimento de 212%. Além disso, havia a previsão de que outras 70 escolas seriam colocadas sob gestão militar. As regiões Norte e Centro-Oeste lideram desde então esse fenômeno, que hoje ocorre em todo o país.
Nos últimos anos, além de pesquisas e posicionamentos, temos na Rede da Campanha atuado de forma constante contra essa política. Em 2020, apoiamos os protestos contra a militarização de escolas no Paraná; em 2021, no Espírito Santo; em 2022, também atuamos ativamente contra a agenda em Mato Grosso; nos últimos anos no DF sob a liderança de Catarina de Almeida Santos.
Além disso, a Campanha foi habilitada em diversas ADIs e ADPFs que tratam de temas relacionados à educação e censura, como nas ADIs 5537, 3874, 3729, e nas ADPFs 457, 460, 461, 462, 465, 466, 467, 522, 526, 578, 600, 624 e 942, todas abordando legislação inconstitucional relacionada à censura e à proibição de discussões sobre gênero nas escolas. Também atuamos na ADI 5.685, que questionava a constitucionalidade da Emenda Constitucional n.º 95/2016 e seus impactos no financiamento da educação.
Em março de 2023, a Campanha fez parte de uma iniciativa coletiva, com mais de 200 entidades, por meio da Articulação Contra o Ultraconservadorismo na Educação, liderada pela Ação Educativa, pedindo ao novo governo o fim da militarização das escolas. Entre abril e novembro de 2023, a Campanha integrou o Grupo de Trabalho Executivo do Ministério da Educação para enfrentar a violência nas escolas, coordenado por Daniel Cara, nosso coordenador honorário, grupo do qual também fiz parte. Esse GT analisou a relação entre o aumento do armamentismo na sociedade e a militarização das escolas, e concluiu que esses fatores estão diretamente relacionados ao aumento de ataques violentos nas escolas, gerando mortes e impactos dolorosos à sociedade.
Em novembro de 2023, há um ano, lançamos o Mapeamento Educação sob Ataque no Brasil, que revelou o avanço das ideias de retrocesso em direitos por meio da agenda educacional. Esse mapeamento documentou 201 casos de ataques às escolas entre 2013 e 2023, sendo a militarização responsável por 21,4% desses casos. A maioria ocorreu na região Centro-Oeste, e esses dados ressaltam a gravidade do problema.
Gráfico 1 – Casos por palavras-chave, Mapeamento Educação sob Ataque no Brasil. Fonte: Campanha Nacional pelo Direito à Educação, 2023.
Denúncias e recomendações internacionais
A militarização da educação já foi alvo também de denúncias internacionais. Em março de 2020, a Campanha enviou à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) um ofício solicitando informações sobre o direito à educação durante a pandemia de COVID-19, em conjunto com outras organizações, abordando também os casos de militarização das escolas. No ano seguinte, participei de uma reunião com a CIDH, alertando sobre o aumento preocupante da militarização nas escolas. Em março de 2021, a CIDH publicou um relatório manifestando preocupação com a militarização das escolas públicas, destacando que o direito à educação requer uma pedagogia que respeite a individualidade, promova a cidadania e que seja realizada por profissionais especializados, ressaltando a distinção entre a natureza das forças armadas e a dinâmica educacional.
Essa preocupação internacional se materializou em agosto de 2022, quando, após as denúncias levadas pela Campanha à Revisão Periódica Universal (RPU) da ONU, o Brasil recebeu uma série de recomendações sobre o direito à educação. Entre elas, estava a necessidade de suspender políticas que contrariassem a Constituição Federal de 1988, como a militarização das escolas.
A militarização das escolas também foi discutida em esferas internacionais, como na reunião de setembro de 2023 com o Comitê sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (DESC) da ONU. O contrainforme “Relatório Paralelo sobre a Crescente Militarização da Educação Básica, a Perseguição Sistemática de Educadores e a Censura a Temáticas de Direitos Humanos nas Escolas Brasileiras”, elaborado por diversas organizações**, incluindo a Campanha, destacou a perseguição a educadores e a censura de temas importantes, como a história brasileira e a diversidade sexual. As denúncias foram reiteradas em reunião com membros do Comitê DESC e organizações da sociedade civil brasileira, realizada de forma híbrida em 27/9/2023, durante o processo de análise do país na ONU.
Com o mesmo propósito, em 12 de junho de 2023, as requerentes participaram de Audiência com a Relatora Especial sobre Direitos Econômicos, Sociais, Culturais e Ambientais da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (REDESCA/CIDH), Soledad García Muñoz. Na reunião, discorreram sobre a perseguição sistemática a professores e as violações de direitos relacionadas à militarização de escolas, e entregamos um documento com essas denúncias e demandas. Referidas organizações também incidiram por ocasião da produção do informe anual da Relatora Especial sobre o Direito à Educação da ONU, Farida Shaheed, que em 2023 focou a temática “O direito à liberdade acadêmica”, fazendo com que a relatora destacasse as consequências da crescente militarização da educação básica para o cerceamento das liberdades acadêmicas.
Neste ano, em agosto, participamos da Pré-Sessão da revisão do Brasil no Comitê sobre os Direitos da Criança da ONU, denunciando o crescente processo de militarização das escolas, que afeta diretamente cerca de meio milhão de crianças e adolescentes em 23 estados e no Distrito Federal. Após enviado relatório com informações do Mapeamento dos Ataques à Educação no Brasil, os comissionados do Comitê questionaram sobre a questão da militarização das escolas, que já foi alvo de recomendação, em 2015, de desmilitarizar as escolas, após denúncia também da Campanha Harris questionou sobre o aumento estarrecedor da militarização das escolas no Brasil, ao que informamos que cresceu 344% nos últimos seis anos, afetando diretamente cerca de meio milhão de crianças e adolescentes em 23 estados e no DF, afirmando que a militarização impõe um modelo autoritário e excludente, contrário ao desenvolvimento integral que buscamos na educação pública de qualidade. O Comitê, então, incorporou temas levados pela Campanha Nacional pelo Direito à Educação nas questões direcionadas ao Estado brasileiro. O Brasil é solicitado a responder por escrito até 15 de fevereiro de 2025.
Veremos o que o Comitê sobre os Direitos da Criança e o Supremo Tribunal Federal dirão sobre o assunto, no ano que vem – mas com a certeza de que não estamos vendo em silêncio, mas em ação-reflexão e no esperançar, do agir por uma escola democrática, emancipatória, libertadora, que seja de fato a máquina que Teixeira vislumbrou, de forja da democracia.
*São eles: Bárbara Lopes (da Ação Educativa, integrante de nosso Comitê Diretivo), Catarina de Almeida Santos (professora da UnB e integrante de nosso Comitê DF), Denise Carreira (ex-coordenadora geral e atual integrante da rede da Campanha, professora da FEUSP), Fernando Cássio (professor da FEUSP e membro da Rede Escola Pública e Universidade – Repu, que é integrante do Comitê Diretivo da Campanha); Salomão Ximenes (professor da UFABC, membro da Repu e da Associação Nacional de Pesquisa em Financiamento da Educação – Fineduca, ambas de nosso Comitê Diretivo), e Fernando de Araújo Penna (do Observatório Nacional da Violência contra Educadoras e Educadores – ONVE, do qual a Campanha integra o Conselho).
**São elas: Articulação contra o Ultraconservadorismo na Educação, a Rede Nacional de Pesquisa sobre Militarização da Educação – RePME, a Campanha Nacional pelo Direito à Educação, a Ação Educativa, o coletivo Professor@s Contra o Escola sem Partido e a Plataforma de Direitos Humanos – Dhesca Brasil, com o apoio da Clínica de Políticas Públicas e Direitos Humanos da Universidade Federal do ABC (CPPDH/UFABC) .