A luta contra a militarização das escolas, além de questão educacional, é uma questão civilizatória
Precisamos urgentemente desmilitarizar as escolas e a vida e promover ambientes educacionais seguros, saudáveis e emancipatórios, especialmente na educação básica, mas não somente
Nesses últimos dias, tivemos Tarcísio e Ratinho Jr. estampando manchetes pelo país sobre os processos generalizados de militarização de escolas que têm promovido. Na semana passada, estudantes foram agredidos e detidos por se manifestarem contra esse processo na Assembleia Legislativa de São Paulo. Foram cenas autoexplicativas de como o Estado quer tratar nossos estudantes: calar suas vozes e sua participação e usar as forças públicas para isso.
E essa ação é diametralmente oposta ao que deve ser uma educação de qualidade, emancipatória, contribuindo com a formação cidadã e humana integral dos nossos estudantes. O Mapeamento Educação Sob Ataque, coordenado pela Campanha Nacional pelo Direito à Educação, mostrou que nos últimos 11 anos, dos 201 casos de ataques à educação nacionalmente (com violências, discriminações e demais violações de direitos), a predominância foi no tema da militarização, que representou 21,4% dos casos identificados (gráfico abaixo).
Durante os 11 anos abrangidos pela pesquisa de casos específicos, é possível notar um aumento sistemático no número de casos que culmina no ano de 2023, que corresponde a 40,0% dos casos levantados. O ano de 2022 também merece destaque, por ter apresentado 23,4% dos casos. Ou seja, há cada vez mais violações de direito na educação e a maioria delas está ligada à agenda de militarização da educação e da vida.
O Centro-Oeste é uma das regiões com maiores concentrações de casos de violação sobre o tema da militarização. Na tramitação de proposições legislativas nas casas estaduais, também tem esse tema entre os mais tratados, incidindo em 57% (militarização + mirim, que trata de escolas militares ou de guardas e bombeiros mirins), no sentido de dar maior colchão legal para uma ação que é inconstitucional. Inclusive, diversas entidades, entre elas a Campanha Nacional pelo Direito à Educação, estão no Judiciário levando essa argumentação da falta de constitucionalidade da prática.
É compreensível que haja demanda de parcela da sociedade pela militarização, por acreditarem que isso vai resolver parte do problema da falta de qualidade da nossa educação, garantindo disciplina para o aprendizado de nossos estudantes, ou por desejarem um espaço de maior segurança para as escolas as quais os seus filhos frequentam. Acontece que já está mais que comprovado que esse modelo não resolve nem qualidade, nem aprendizagem, nem segurança – basta ver as pesquisas extensas, sérias e aprofundadas da Rede Nacional de Pesquisa sobre Militarização da Educação – RePME.
No dia 27 de maio, uma centena de entidades da sociedade civil e acadêmicas assinaram posicionamento conjunto que traz uma série de argumentos e questionamentos a respeito, que são importantíssimos para quem quer entender mais sobre o assunto e as ameaças que traz à educação:
- “Por sua natureza disciplinar voltada para a promoção da obediência à hierarquia ancorada em bases militares, a militarização fere princípios constitucionais do ensino, como a liberdade de aprender e ensinar, o pluralismo de ideias, a valorização de profissionais da educação e a gestão democrática (Constituição Federal, art. 206, incisos II, III, V e VI); fere o direito à liberdade, ao respeito e à dignidade de crianças e adolescentes (Estatuto da Criança e do Adolescente, art. 15, 16 e 18-A); e o respeito à identidade e à diversidade individual e coletiva da juventude (Estatuto da Juventude, art. 2º, inciso VI), entre outras normativas.
- Os programas de militarização, em todos os entes federativos, não estão amparados em nenhuma das diretrizes, objetivos, metas e estratégias de implementação inscritas na Lei n. 13.005/2014 (Plano Nacional de Educação), sendo incompatíveis com o preceito constitucional do art. 214 da Constituição, que atribui ao PNE a articulação do sistema nacional de educação.
- Policiais militares não são educadores, não estão no rol de profissionais autorizados pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (art. 61) a atuar na gestão das escolas ou em qualquer outra função típica dos trabalhadores da educação. A contratação de policiais gera disparidades significativas entre os salários de profissionais da educação, dado que oficiais em escolas recebem um salário consideravelmente maior do que professores e outros profissionais. Escolas militarizadas também violam liberdades de expressão, de organização e de associação sindical dos profissionais da educação, aumentando o fenômeno de autocensura e censura de professores.
- As escolas militarizadas não são mais seguras, ampliam violações de direitos e violências; há diversas denúncias de situações de assédios moral e sexual e abusos físicos e psicológicos contra estudantes praticada por agentes militares.
- O modelo militarizado não contribui para o desenvolvimento integral dos estudantes, seu preparo para o exercício da cidadania e para a promoção de sua autonomia e emancipação. Ao contrário, a hierarquia rígida e a disciplina inflexível que permeiam esse modelo promovem o silenciamento, a submissão e a obediência acrítica às regras impostas e à autoridade. A padronização dos comportamentos e das aparências também atua num processo de supressão da individualidade em favor de uma homogeneização.
- Os programas de militarização ampliam as desigualdades educacionais, introduzindo desigualdades no financiamento internas às redes de educação e mecanismos de exclusão de estudantes em maior vulnerabilidade socioeconômica (inclusive pela cobrança de taxas em algumas das unidades militarizadas e exigências de uniformes próprios das forças militares), com deficiência, com distorção idade-série, dificuldades de aprendizagem e de se adequarem às normas e padrões, além de adolescentes e jovens trabalhadores. Nesse sentido, não é possível afirmar que escolas militarizadas melhorem o desempenho dos estudantes.
- Escolas militarizadas reforçam os estereótipos em relação aos papeis masculinos e femininos na sociedade, que limitam a liberdade dos indivíduos, coíbem a expressão da diversidade de gênero e sexualidade e a demonstração de afetos, principalmente de jovens LGBTQIAPN+. Elas também reproduzem o racismo estrutural e institucional, impõem padrões estéticos baseados na branquitude e violam a liberdade de crença.”
Fui aluna do Colégio Militar, federal, diferente do processo de militarização, estadual, mas com gestão militar também. Até hoje sinto em mim as marcas de uma educação autoritária, que tolheu boa parte de minha flexibilidade de ver a vida, de ousadia em me colocar no mundo, de criatividade sobre o que posso ser e fazer. Felizmente, tive a oportunidade de ter uma família amável e acolhedora e de ter outras experiências extracurriculares e de educação crítica não-formal na vida, que me deram resiliência e outras referências. Ainda assim, foram muitas sessões de terapia e de reflexão para desengatilhar processos de crises de pânico quando as coisas saiam minimamente do controle e ainda enfrento transtorno de ansiedade generalizada. Precisamos urgentemente desmilitarizar as escolas e a vida e promover ambientes educacionais seguros, saudáveis e emancipatórios, especialmente na educação básica, mas não somente. É uma questão de educação, de cidadania, de saúde mental – mas é, sobretudo, uma questão civilizatória.