A loucura que vende (e venda!)
Confira entrevista com Priscilla Rezende, hoje conhecida como por sua página: desin.fluencer. Ela fala como redes sociais podem ser bem tóxicas e distorcer realidades com a finalidade de te enganar, te levar a comprar produtos sem nenhuma comprovação científica e criar ilusões cada vez mais bizarras.
Ela é uma mulher que acredita na lei, se considera brigona, acredita que as pessoas precisam ter seus direitos contemplados e atribui isto a uma herança do pai. Trabalhou como farmacêutica no SUS e de um lado atuava com medicamentos de alto custo, do outro encaminhava pessoas para o promotor da cidade quando se viam impedidas de conseguirem os remédios. Fez uma revolução no mundo das blogueiras de moda criando o famoso Blog Shame on you, blogueira que denunciava os abusos no mundo da publicidade.
SIM, estamos falando dela: Priscilla Rezende, hoje conhecida como @desin.
Para esta coluna, tive o prazer de conversar um pouco com ela, falar do antes e depois desse mundo onde conteúdos nas redes sociais podem ser bem tóxicos e distorcer realidades com a finalidade de te enganar, te levar a comprar produtos sem nenhuma comprovação científica e criar ilusões cada vez mais bizarras. Confira abaixo:
Olá, Priscila. Conta para a gente primeiro o que te levou a entrar neste mundo de blogueira na época do Shame on You?
Em 1998 criei um blog para falar de coisas que as pessoas deveriam saber. Era uma época de consumismo, de esmaltes. Ainda morava em Belo Horizonte. Em 1999 casei com um gaúcho que conheci por causa do blog e mudei para Porto Alegre com ele. Aí comecei a ter contato com as blogueiras de lá. Foi quando conheci a “rede”: práticas de dizer que um shampoo era maravilhoso, sendo que não era verdade. Fui vendo isso, entendendo o jogo. Sacando os bastidores.
Acho que criei o Shame On You Blogueira porque fiquei indignada. Foi todo aquele bafafá. Hoje eu me arrependo de muita coisa que fiz lá, tinha coisas desnecessárias. Mas criei um legado sobre publicidade, tanto que foi a primeira vez que fizeram um processo na publicidade digital por causa de uma denúncia minha.
E o que te fez fechar o blog?
Por motivos pessoais. Mudei de estado, de vida, tive câncer de mama duas vezes, passei por uma mastectomia, me divorciei. Aconteceu muita coisa, fui cuidar de mim e fiquei por fora do mundo da Internet.
O que te fez retornar agora com o @desinfluencer?
Com um mês de pandemia, tive crise de pânico. Vim para Minas ficar com meus pais em um sítio. Sem nada para fazer, fui ver como andava este tal de instagram. Ficava sabendo de uma coisa ou outra, alguns nomes conhecidos, mas estava por fora.
Quando voltei às redes, fiquei horrorizada. Meninas com 20 milhões, 10 milhões de seguidores. Na minha época não tinha isso, eram 400 mil ou 500 mil mesmo os blogs mais populares.
Perdi esse fenômeno de instagram e fiquei chocada. Vi pessoas que nunca tinha ouvido. De onde veio esse povo? Eu toda noiada com a pandemia. Quando a gente é leiga, não sabe a dimensão da coisa. Eu que trabalho com saúde estava em pânico e vi que as pessoas estavam vivendo como se nada estivesse acontecendo.
A questão do governo também. Meus irmãos moram em Brasília e me narravam eventos preocupantes sobre a política de lá. “Esse cara é louco”, eu pensava.
Se tem uma coisa que me deixa nervosa é Bolsonaro e quem o defende. No caso, também influencer bolsoninion e que era antivacina.
Foi aquela bola de neve. Eu precisava voltar para as redes. Fiz o perfil em junho do ano passado e um dos primeiros posts foi de uma influencer falando que pílula de crescimento de cabelo aumentava a imunidade e ajudava a prevenir covid. Este foi o gatilho que faltava para voltar.
E mesmo se afastado por anos, como foi para recolher material para recomeçar?
Elas próprias (influencers) produzem ou meus seguidores me mandam. Recebi tudo e não precisei corri atrás de nada.
O perfil @desinfluencer é diferente, falo com bases na ciência, falo de assuntos que precisam de seriedade, estudo muito antes de postar.
E não, não ganho dinheiro por isso. Afinal, quem é que vai me pagar para dar uma opinião sincera de um produto? Fiz até um post, mas testei 3 meses antes de fazer a publi.
Como tem sido para você esta volta?
É pesado, tem semana que mal consigo postar, tentei desistir, mas tô continuando. Não podemos nos calar e eu não tenho medo de processo. Medo eu tenho é de bandido. Agora, parei de ler comentários pra não ficar chateada. Minha conta é denunciada quase diariamente. Daqui a pouco o instagram vai desativar a minha conta, mas vou levar até quando conseguir.
Como você encara o seu legado com a Shame On You? Aliás, falando neste legado, ao que você atribui o sucesso do blog na época?
Acho que fez sucesso porque foi algo inédito na época. Fui a primeira pessoa a falar o que acontecia. Li o Código do Consumidor, sabia o que não podia fazer e expus isso. As pessoas não sabiam que certas blogueiras recebiam para fazer post. Uma que falava de maquiagem e produtos de beleza, por exemplo, quando falava “10 produtos para levar na bolsa de praia” colocava cada produto em um link de afiliados e ganhava sobre as vendas. Mostrei para as pessoas como elas podiam identificar isso, a identidade de afiliados. O povo achou aquilo fabuloso.
Mas acho que fez sucesso também, infelizmente porque eu falava mal, tinha “a loka do dia”. Me arrependo e jamais faria isso que perfis de fofoca praticam até hoje e, por isso, tem milhões de seguidores. Só se prestam pra falar mal das pessoas, acho que teve esse lado do shame.
Sobre desmascarar as blogueiras, eu provava que a bolsa da fulana era falsa. Ia na marca e via que não tinha sido feito naquela cor. O povo amava este castelo de ilusões que estava ruindo. Acho que isso junto com a fofoca.
Mas ainda hoje, anos depois do Shame On You, você percebe que as pessoas ainda querem escutar a verdade mesmo havendo blogueiras e influencer com milhões de seguidores? Qual é a sua opinião sobre essa aparente contradição?
Essa pergunta é interessante. Eu recebo muitos comentários assim “eu amo a fulana, mas não aguento ela fazer publi do chá e não identificar”. Eu fico pensando “como você ainda ama uma pessoa que mente para você?”. Recebo muito esse tipo de comentário.
Ou então “acho a fulana super sensata, mas ela fazendo isso eu achei errado” ou ainda “sigo fulana há muitos anos, mas isso e isso”. Fico refletindo: por que não parou de seguir até hoje? Não vou seguir uma pessoa que mente para mim. Eu acho que tudo isso é um distúrbio psicológico. A pessoa tá tão mal que ela entra na vida dessas mulheres e são influenciadas por elas. Quando vê uma menina que era pobre se tornou milionária numa mansão com a imagem toda transformada, a pessoa se vê numa ilusão de que isso pode acontecer com elas um dia. Aí, na impotência de fazer alguma coisa para que elas consigam alcançar aquilo, elas começam a consumir o que as influencers consomem. É um meio de chegar perto delas.
“A fulana usa esse batom, vou usar também”
É um certo desequilíbrio emocional. Para você ver, eu posso postar qualquer coisa sobre uma influencer que vem uma tropa. Ainda rola muito esse discurso de meritocracia. Cheguei a fazer um fluxograma de quadro societário de uma influencer que é herdeira de uma grande loja de departamentos.
Aí ela faz um post de meritocracia e o povo caiu de pau, dizendo que ela é trabalhadora.
Gente! Trabalhadora é a pessoa que acorda 4h da manhã e volta pra casa de noite, tem que estudar, pegar condução…. O povo é louco. Não quer saber que a dita influencer tá ligada a um dos bancos que influenciaram a candidatura do Bolsonaro ou que o marido ocupa hoje o local que era de um político corrupto.
A falta de leitura e de interesse das pessoas… o povo fica imerso e alienado com aquilo. Acho realmente um problema psicológico, uma fuga que deixa as pessoas muito loucas. Na minha opinião, todo fanatismo é do mal.
Você acha que esse fanatismo piorou depois da eleição da presidência?
Com certeza, este cenário só piorou com a eleição do Bolsonaro. Olha, eu não sou psicóloga, mas vejo a loucura que é. A menina gorda que vê o curso “seca-barriga” da influencer de emagrecimento e paga 3, 4, até 5 mil que não tinha para fazer. Ou a menina pobre que vê uma influencer numa mansão e paga o curso que ela está vendendo para ter sucesso. Eu acho uma loucura fora da realidade.
São as projeções das meninas, parece dica de amiga e na verdade tá vendendo maquiagem.
Falando em produtos, você acha que essa ascensão de produto existe ainda hoje? Porque antigamente as meninas se projetavam com a imagem, mas hoje há uma nova era de blogueiras que se apresentam como coach e além do padrão da aparência, buscam influenciar também no comportamento, como por exemplo pessoas que falam sobre ser submissa ao marido. Como você enxerga isso e qual é para você o objetivo dessas mulheres?
Ainda existe sim, esse foco no produto. Bem aquela dinâmica “se eu não posso ser ela, eu vou usar a linha de shampoos dela, eu uso a lingerie da marca dela”. Isso faz as influencers ficarem milionárias. Mas há outros meios também. Um deles é o sorteio ilegal, daquelas fotos editadas com as influencers em cima de kit de maquiagem, de bolsa, de Iphone. Todas as fotos são editadas. Fiquei sabendo por fontes mais seguras que uma certa influencer da área da beleza cobra R$ 300 mil reais para fazer um desses sorteios ilegais.
E agora é o momento que elas mais estão ganhando dinheiro. Elas começaram a dar tiro para todos os lados. É sorteio, é coleção de skincare, é curso. Isso realmente mexe com o psicólogo.
Uma influencer de emagrecimento sem formação, lançando curso do seca-barriga e dizendo que precisa ser magra pra ser bonita. Agora tem também esses coachs de antifeminismo, em especial homens. Não sei de onde saiu isso e se vê muito esse tipo de fala “seu casamento não dá certo porque sua força é masculina. Seu poder masculino sobressai ao feminino. Tem que ser mais feminina…”. Não sei se onde saiu isso. Tem que ficar em casa, procriar, deixar tudo arrumadinho e esperar o provedor chegar senão vai arrumar outra na rua porque você não tá sendo feminina. A maioria é homem falando isso e tem uma vertente religiosa nesses discursos. Pegam trechos de da bíblia fora do contexto, é tanta ignorância junta.
Dá vontade de falar “filha, se você tem um celular com rede social é por causa do feminismo. Se não seria O Conto da Aia (livro de distopia da Margaret Atwood).
Falta leitura, o povo não quer ler. Faço post e escrevo na legenda, a pessoa vai no comentário e me pergunta tudo que escrevi na legenda. As pessoas não querem ler. É um surto coletivo que a gente tá vivendo. É uma coisa para a gente pensar e ter medo disso.
Você, que sabe muito do que ocorre debaixo dos panos, sabe que há pessoas lucrando em cima de um padrão de vida que têm. Agora, você sabe também de casos de influencer que lucram em cima de um padrão totalmente inventado? Que alugam casas para mostrar um padrão que não é nem o delas e enriquecem com essa mentira? Que lucram em cima desse sonho?
Existe sim, não tenho provas concretas que existem formas de alugar bolsa, barco, carro, casa e forjar uma vida de milionária vendendo um curso sem que aquilo seja real. Tem um caso de uma influencer que fingiu que estava num barco dela, mas o barco na realidade era do cunhado.
Depois dessa nossa conversa, conta para a gente o que fazer em relação a essa corrupção que rola dentro das redes? Como escapar disso?
Acho que tem duas partes aí, a corrupção e o caráter da pessoa. Primeiro, não gosto de julgar sem saber o lado b da história. Uma influencer que vem de uma origem humilde pode se encantar, iludir, cair em agências desonestas ou acabar por vaidade.
No fim do dia, as palavras-chave para mim são caráter e respeito com as outras pessoas. E, claro, uma questão de lei também: é proibido fazer publicidade sem identificar ou publicidade enganosa.
Obrigada Priscila Rezende pela entrevista, pela simpatia e pelo ativismo. E a gente segue lutando, conversando e mostrando a verdade.