A Lei Rouanet e os cachês do poder
Se tais artistas que dizem não precisar da Lei Rouanet soubessem o quanto é difícil captar recursos pela CNIC, nem falariam nada.
Adoro as músicas do Gusttavo Lima! É sério, gosto mesmo, de verdade. Das músicas dele e das de quase todos os sertanejos. Não posso dizer o mesmo de suas ideias políticas. Mas, isso não vem ao caso. O que vem ao caso é a implicância dele e de colegas seus para com outros artistas que, menos populares que eles, têm acesso a recursos públicos por intermédio da Lei Rouanet.
Confesso que só conseguia entender o porquê dessa implicância quando pressupunha alguma espécie de má-fé por parte dos implicantes. Afinal, pelo que já se sabia e se tornou de conhecimento do grande público agora, após o cantor Zé Neto, da dupla com Cristiano, zombar de uma tatuagem íntima de Anitta e criticar a Lei Rouanet, tais artistas consagrados pela mídia e pelo público, que dizem não precisar recorrer a recursos de editais de fomento à Cultura, são os mesmos que amealham fortunas em cachês milionários, pagos com recursos igualmente públicos, por prefeituras do interior, em contratações diretas feitas por inexigibilidade de licitação, para shows em feiras agropecuárias e festividades municipais.
Aliás, se tais artistas que dizem não precisar da Lei Rouanet soubessem o quanto é difícil captar recursos para um projeto aprovado por sua Comissão Nacional de Fomento e Incentivo à Cultura (CNIC), nem falariam nada. Porque aprovar um projeto na Rouanet é fácil! Difícil é captar o recurso. Explico:
A aprovação de um projeto pela Rouanet significa apenas a autorização para que o seu proponente (artista ou produtor cultural) faça a captação dos recursos junto à iniciativa privada. E apenas grandes empresas que pagam tributos segundo o regime de lucro líquido real podem patrociná-los (micro empresas, empresas de pequeno e médio porte não se enquadram na Rouanet). Em troca, elas podem abater esse valor, limitado a 6% de seu faturamento, de seu IRPJ. Ou seja: é dinheiro público sim, do imposto de renda, devido pela empresa ao fisco, mas que ainda não ingressou nos cofres públicos.
Na prática, quem decide em qual projeto uma empresa pode aportar recursos para abatimento de impostos é o seu Departamento de Marketing que, geralmente, quer associar sua marca à imagem de um artista consagrado e que dê retorno publicitário aos seus negócios. Nesse sentido, dificilmente um artista iniciante, regional, erudito ou de estados e cidades periféricas consegue captar tais recursos. Afinal, que grande empresa vai querer associar sua marca à imagem de um ilustre desconhecido? Quase nenhuma. Fora que as empresas não são obrigadas a patrocinar projeto algum: só o fazem se quiserem.
O fato é que o artista iniciante ou não-consagrado pelo grande público não recebe recursos nem de cachês milionários pagos por prefeituras, nem de milhões de streamings nas plataformas virtuais e nem da Lei Rouanet. A briga aqui é entre artistas de massa e artistas que, ainda que consagrados, não são tão conhecidos do grande público, mas que agregam valor à uma marca ao ter sua imagem vinculada a ela.
O que diferencia, portanto, estes daqueles, se ambos acabam obtendo parte de seus faturamentos com recursos públicos? Os valores e a frequência com que eles são recebidos. Pela Lei Rouanet, além da dificuldade de captar os recursos, os cachês são limitados ao valor de R$ 3 mil, geralmente em um ou dois projetos por ano. Já nos contratos de prefeituras, todos estão muito acima da casa dos RS 500 mil. E tem show de prefeitura quase todo final de semana. A diferença é gritante.
No caso do “Embaixador”, saltam aos olhos a exorbitância desses valores, assim como a diferença entre eles. Para a Prefeitura de São Luís, Município com o menor PIB de Roraima, foi cobrado o valor de R$ 800 mil, o que corresponde a 266 vezes o teto da Lei Rouanet. Em Magé-RJ, o valor teria sido de R$ 1 milhão. Já para a Prefeitura de Conceição do Mato Dentro-MG, o valor foi de R$ 1,2 milhões. E pelo menos mais 26 prefeituras estão sendo investigadas por atribuir valores astronômicos a cachês artísticos.
A verdade é que não tem nada de errado em se utilizar de recursos de Leis de Incentivo à Cultura ou em ser contratado e pago pela Administração Pública. Em um país em que, apesar dos avanços, a Educação ainda é frágil e a Cultura é marginalizada pelo próprio presidente da República, por sua família e por sua horda de seguidores fanáticos, é mais do que necessário incentivar, fomentar e apoiar a arte e a cultura, popular e erudita, com recursos públicos, desde que em valores razoáveis e não exorbitantes.
Se há limite ou teto de cachê na Lei Rouanet, também deveria haver um limite ou teto para shows contratados de forma direta, sem licitação, pelo Poder Público. Além disso, deve haver o cuidado para que não haja desvio de finalidade, ou seja, para evitar que se utilizem de recursos de outras áreas para pagamento de cachês artísticos. No mais, segue o bonde.
*Daniel Zen é doutorando em Direito (UnB) e Mestre em Direito, com concentração na área de Relações Internacionais (UFSC). Professor Assistente-A, Nível 1 (licenciado), do Centro de Ciências Jurídicas e Sociais Aplicadas (CCJSA) da Universidade Federal do Acre (UFAC). Contrabaixista da banda de rock Filomedusa. Colunista do portal de jornalismo colaborativo Mídia Ninja. Deputado Estadual, em segundo mandato, pelo PT/AC. E-mail: [email protected].