A guerra da construção de sentido
Ao momento em que a Rússia ataca a Ucrânia, Yemen, que divide seu território entre África e Ásia, chega ao seu oitavo ano de uma sangrenta guerra civil
Não existe forma humana alguma de convalidar a dor de pessoas que da noite para o dia se vêem envoltas em meio a uma guerra que ameaça destruir suas vidas e a dos seus seres queridos. E que leva horror e miséria para seu cotidiano. Não importa o país ou região do mundo, a dor humana é igual para todos.
O que às vezes é irritante, é como temos criado uma rede de comunicação (de redes sociais e mídias corporativas) nas quais somos capazes de ignorar, ou conviver com a dor de povos que parecem naturalmente condenados a terem suas dores ignoradas, aceitas como parte da sua forma mesma de existência. Se isso não é o reflexo de uma sociedade que ainda hoje vive colonizada pela metrópole ocidental, que alguém encontre uma explicação alternativa.
Ao momento em que a Rússia ataca a Ucrânia, Iêmen, que divide seu território entre África e Ásia, chega ao seu oitavo ano de uma sangrenta guerra civil que coloca 24 dos seus 29 milhões de habitantes em situação de necessidade de ajuda humanitária. A fome, a desnutrição, os horrores da guerra, levam o país, dia após dia, a ser um dos mais pobres e com pior IDH do mundo. Há oito anos que, como um todo, decidimos não dar a mesma importância à situação do Iêmen, como damos hoje ao que acontece com a Rússia e a Ucrânia. Hoje, tem gente que se diz pró Ucrânia ou pró Rússia. Ninguém diz ser pro Huties ou pro Al-Hadi, que são as duas facções iemenitas em conflito, porque não existe um interesse mínimo em saber o que acontece em um lugar que não aparece na grande mídia ou nos trending topics.
Na Etiópia, há dois anos a guerra tem produzido um número gigante de refugiados que andam boiando para encontrar um lugar melhor no mundo, que sofrem xenofobia na própria Sul África, e, quando não, na velha e conhecida Europa. O mesmo acontece no Congo, um dos países mais ricos em recursos minerais no mundo, explorado pelas corporações de tecnologia como Apple. São acusados ainda de exploração infantil para extrair o infernal COBALTO para que muitos possam ter tablets, smartphones e computadores mais velozes, ou para que o dono da Tesla anuncie mais um carro elétrico e seja aplaudido por milhares de forma presencial e online, por salvar o mundo da poluição, e ganhar assim, seu direito a comprar sua passagem para conhecer Marte. Mas ninguém se diz pró Apple ou pró Congo para o país recuperar seus recursos, porque qual mídia teria interesse de nos bombardear com esse conflito o dia todo? Quem teria coragem de colocar isso como pauta no Twitter?
É do Congo que veio como refugiado Moïse Kabagambe, que hoje, aos poucos, passa a formar parte do que vamos deixando atrás. Hoje seu caso se torna uma espécie de fantasma virtual, sem potencial sensacionalista. Vale lembrar que Moise morreu por ser negro, refugiado e pobre, de uma forma brutal e que ainda hoje não foi feita justiça por seu assassinato.
Honduras recupera sua democracia com a eleição da primeira mulher presidenta no país, Xiomara Castro, o que significa também uma esperança para o povo Garifuna. Os Garifunas são o único povo negro do continente americano que não foi escravizado e que, por consequência, conserva sua cultura e sua língua de origem sem intervenção europeia. A história da origem (mítica) do povo Garifuna é uma das mais belas do mundo e um orgulho para o nosso continente latino-americano. Mas a mídia está mais preocupada em encontrar vínculos entre Xiomara Castro e Cuba do que em falar da riqueza cultural desse país, ameaçada durante mais de uma década pela ditadura que derrubou o presidente “de esquerda” eleito democraticamente, Manuel Zelaya.
O Paraguai ainda se recupera do golpe contra Lugo, Perú, do massacre social provocado pelos neoliberais nos anos 90, que sumiram o país em uma miséria difícil de superar. África e América Latina, como um todo, sangram pela exploração de empresas transnacionais, pelo racismo, pelas intervenções militares e financeiras que apoiaram golpes de estado (hoje ainda impunes), que geraram o caos e a violência social com a qual convivemos dia a dia, e que, como consequência, também foram responsáveis pela superioridade financeira da metrópole que hoje padece, lamentavelmente, mais um conflito.
Etiópia, Congo, Sudão, Somália, Síria. Milhares de refugiados, alvos da xenofobia e do racismo ao redor do mundo. No mesmo momento em que os jornais preenchem as 24 horas do dia com correspondentes, especialistas, analistas, para falar de Putin, Donbass, do Zelenski. No mesmo momento em que Twitter explode com tantos outros analisando, brigando, tomando partido por um ou por outro.
A periferia não importa a ninguém, esse é um fato cruel e irrefutável. É tão lamentável a guerra na Ucrânia, quanto a indolência com que tratamos nossos países irmãos mais próximos, a falta total de vontade de conhecê-los, de conhecer sua arte, seus pensadores, sua história.
É claro que em essa guerra se debatem interesses geopolíticos mundiais, mas é justamente isso que deve entrar no debate e ser combatido. Nessa lógica estagnada, o nosso futuro depende diretamente do que acontece na metrópole colonial, mesmo sabendo que a Rússia vem sendo um contraponto à hegemonia neoliberal liderada pelos Estados Unidos. Com as grandes contradições que existem na figura de Putin.
Conhecer o que acontece na Somália, no Congo, conhecer a história política latino-americana, para nos manter sempre alerta de que o que aparece no nosso feed, na grande mídia, não é a realidade absoluta, a realidade é mais complexa e a nossa sensibilidade não pode ser direcionada dessa forma tão seletiva. A batalha cultural também consiste em apresentar resistência ao bombardeio da informação que recebemos dia após dia. Resistir e encontrar saídas, construir nosso próprio sentido, com prioridades próprias e alheias a todo interesse colonizador.