
A cultura queer como inspiração de “Werk It”
Reality de moda e beleza que transforma os bastidores do image making em espetáculo tem formato originalmente brasileiro
Por André Nunes
“Werk It” não é uma reprodução envernizada da cultura queer. Não foi idealizado por quem olha de fora ou consome a estética sem entender sua origem. Ao contrário: foi criado por quem vive essa cultura no cotidiano, por artistas e profissionais que fazem parte da comunidade LGBTQIAPN+ em sua diversidade. É uma obra feita de dentro para fora, nascida da vivência, da escuta, da militância e da prática. Cada detalhe do programa carrega a autenticidade de quem conhece o peso — e a beleza — de existir em dissidência.
Ao longo das últimas décadas, a cultura queer passou de marginalizada a matriz de inspiração global nas artes, na moda, na música e, sobretudo, no audiovisual. Muito antes de ser tendência, a vivência LGBTQIAPN+ já era linguagem. Criar, performar, reinventar o corpo, a imagem e a existência sempre foi, para pessoas queer, mais que estética: foi estratégia de sobrevivência, comunicação e afirmação de identidade. “Werk It”, novo reality show do canal E! Entertainment, nasce diretamente dessa potência. Não apenas inspirado pela cultura queer, mas construído a partir dela.
Com um formato original brasileiro, “Werk It” é um reality de moda e beleza que transforma os bastidores do image making em espetáculo. Nele, sete Houses (coletivos formados por maquiadores, cabeleireiros e stylists) disputam semanalmente quem entrega a melhor composição visual para desafios propostos por apresentadoras e convidados. O programa mistura competição com colaboração, técnica com criatividade, e sobretudo, performance com autenticidade. E o mais importante: faz tudo isso com alma queer.
A estrutura do programa é visivelmente influenciada pela lógica das ballroom scenes novaiorquinas dos anos 1980, espaços criados por pessoas negras e latinas LGBTQIAPN+ como forma de acolhimento, criação artística e resistência. Em “Werk It”, as Houses não são apenas times: são famílias temporárias, espaços de afeto, embate e construção coletiva. A cultura queer está presente não só na estética exuberante, mas na ética que norteia o jogo, como a valorização da diversidade, a exaltação da expressão individual e a ideia de que imagem é discurso.
Não se trata de apenas colocar pessoas LGBTQIAPN+ na frente das câmeras. “Werk It” foi pensado desde a raiz por uma equipe majoritariamente formada por pessoas LGBTQIAPN+, negras, periféricas e nordestinas — profissionais que não só ocupam posições de visibilidade, mas também de decisão criativa. O resultado é um programa em que a representatividade não é simbólica, é estrutural. E é exatamente por isso que emociona e impacta.
A televisão brasileira, durante décadas, tratou a estética queer como caricatura estereotipada ou fetiche. “Werk It” faz o oposto: legitima saberes. Entende que fazer um penteado afro, compor um look para corpos fora do padrão ou criar uma maquiagem que celebre a identidade trans não são atos banais — são manifestações políticas. O reality coloca em destaque profissionais que há anos movimentam a moda real das ruas, das festas, dos editoriais independentes, mas que, até agora, raramente eram reconhecidos como protagonistas.
Mais do que entretenimento, “Werk It” é um dispositivo cultural. Ao premiar a técnica, mas também a ousadia e a autenticidade, ele tensiona os padrões do que é considerado belo e viável no mercado da moda. O programa propõe uma ampliação de repertório — para os competidores, para a indústria e para o público. Cada episódio é um convite a repensar a imagem não como produto pronto, mas como processo criativo e político.
Num país onde corpos dissidentes seguem sendo alvo de violência verbal e física diárias, “Werk It” ocupa um lugar de urgência. Ao exibir, em horário nobre, artistas queer em sua potência criativa máxima, o programa afirma que diversidade não é apenas uma pauta: é um motor de inovação estética e ética. E mais: revela ao mercado audiovisual que é possível, e necessário, criar formatos originais que falem com o agora.
A cultura queer entende que beleza é dissidência, que estilo é atitude e que performar é resistir. “Werk It” pega tudo isso, acende os holofotes e transforma em televisão da melhor qualidade. É mais do que um reality. É uma celebração coletiva da arte de existir com verdade, beleza e coragem.