20 anos de Visibilidade Trans e a luta necessária para avançar
Os desafios na vida da população trans são imensos, desde as dificuldades no acesso à saúde, a emprego e moradia por estigmatização e preconceito
Por Bella Gonçalves e Clarissa Barcala
Em 29 de janeiro de 2004, uma articulação da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) com o Governo Federal criou a primeira campanha nacional feita por e para pessoas trans, intitulada “Travesti e Respeito: já está na hora dos dois serem vistos juntos”. Hoje, 20 anos depois e com a data 29 de janeiro já estabelecida como o Dia Nacional da Visibilidade Trans, olhamos para as décadas de luta da população trans pelo direito à vida, ao respeito e à dignidade, as conquistas reivindicadas e o caminho que ainda precisamos trilhar.
Temos uma atuação parlamentar firme nas políticas da população LGBT+ e o orgulho de caminhar ao lado de movimentos e pessoas fundamentais na luta histórica pela nossa diversidade. Além de políticas mais amplas para a população LGBT+, também conquistamos uma grande vitória para a população trans de Minas Gerais em dezembro do ano passado. Construímos e aprovamos na Assembleia Legislativa uma emenda ao Projeto de Lei 4000/2022, que virou a Lei 24.632/2023 , garantindo a gratuidade nas taxas de cartórios para a retificação de gênero e nome para as pessoas trans.
Nossas emendas parlamentares do ciclo da Lei Orçamentária Anual (LOA) 2023-2024 também tiveram uma atenção especial para projetos que atendem a população trans, destinando o total de R$ 1.188.350 para a ampliação de direitos. Nesse valor, está incluído R$ 438.350 para subsídios para medicação de terapia hormonal às pessoas usuárias do Centro de Referência em Atenção Integral à Saúde Transespecífica (CRAIST), em Uberlândia, a segunda cidade mais populosa do estado.
Outros R$ 400.000 serão destinados à saúde bucal e harmonização orofacial de pessoas trans, viabilizado pela Faculdade de Odontologia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), reconhecendo a saúde como um direito social. O Centro de Atenção Especializada no Processo Transexualizador do Hospital Universitário da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) também receberá investimento de R$ 350.000 no hospital que já foi habilitado na modalidade hospitalar e na modalidade ambulatorial.
Minas Gerais é o quinto estado que mais mata pessoas trans
O Brasil é o país que mais mata pessoas trans no mundo há 15 anos consecutivos, e de acordo com o último Dossiê Assassinatos e Violências Contra Travestis e Transexuais Brasileiras em 2023, realizado pela Antra, foram ao menos 155 pessoas trans mortas, sendo 145 assassinatos e 10 suicídios. Ainda de acordo com a Antra, 37% dos assassinatos ocorreram na região Sudeste, e Minas Gerais foi o quinto estado com mais assassinatos de pessoas trans entre 2017 e 2023, com 80 casos. Números tão expressivos de violência mostram a extrema vulnerabilidade que a população trans é submetida no Brasil, que conta com um acesso severamente limitado a políticas públicas de saúde, educação, inclusão e proteção e, consequentemente, acaba exposta ao preconceito e ao ódio enraizados numa sociedade que ainda é estruturalmente transfóbica.
Os problemas que a população trans enfrenta começam bem antes da idade adulta, ainda na adolescência ou até na infância. A repressão familiar, normalmente, é uma das primeiras formas de violência que uma pessoa trans encara, e que, em casos extremos, pode resultar em abuso físico, psicológico ou até na expulsão de casa. A escola tampouco é um lugar seguro. Uma pesquisa de 2017 realizada pela Rede Nacional de Pessoas Trans do Brasil apontou que 82% das pessoas trans deixam a escola entre 14 ou 18 anos. A Antra, em 2022, afirmou que 70% da população trans não terminou o Ensino Médio. Em Belo Horizonte, a situação é ainda mais delicada: uma pesquisa da UFMG de 2016 concluiu que 91,3% das pessoas trans da capital mineira não passaram do Ensino Médio. Números tão expressivos de evasão escolar resultam, evidentemente, em uma presença baixíssima da população trans nas universidades: pessoas trans representam apenas 0,1% das matrículas no ensino superior brasileiro, mas são 1,9% da população adulta.
O acesso à saúde é ainda mais delicado, pois a maior parte da população trans está em situação de vulnerabilidade extrema e muitos dependem da rede pública para ter acesso a tratamento médico. Terapias hormonais ou cirurgias de transição de gênero através da rede privada, mesmo que com eventual auxílio do plano de saúde, custam muito dinheiro e são de difícil acesso até para a média da população brasileira e ainda mais para as pessoas trans. No entanto, o investimento público em políticas públicas para a saúde da população trans é baixíssimo e os profissionais que atuam na área acabam tendo sua atuação limitada. Além disso, a transfobia estrutural da sociedade frequentemente é refletida na área da saúde, com profissionais pouco instruídos e/ou mal intencionados, resultando em inúmeros casos de violência transfóbica nos atendimentos médicos.
Conquistas ao longo de décadas de luta
Porém, as décadas de luta da população trans conquistaram avanços importantíssimos. As eleições de 2022 mostraram uma representação política sem precedentes: pela primeira vez, duas mulheres trans foram eleitas para a Câmara dos Deputados (Érika Hilton e Duda Salabert), e tivemos a primeira mulher trans a ser eleita para a Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Dani Balbi) e a primeira da Assembleia Legislativa de Sergipe (Linda Brasil).
A transfobia é crime no Brasil desde 2019, após a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) ao enquadrar homofobia e transfobia na Lei de Racismo. Na decisão, o STF definiu como crime condutas que “envolvem aversão odiosa à orientação sexual ou à identidade de gênero de alguém” e a pena pode ir de um a três anos de prisão, além de multa. Em maio do ano seguinte, após muita pressão, a corte também derrubou a proibição que vedava às mulheres trans o direito de doar sangue.
Na saúde, os avanços acontecem de forma lenta e a partir de muita luta. A Organização Mundial de Saúde (OMS) parou de classificar a transexualidade como doença mental apenas em 2019, depois de manter a condição como transtorno mental na Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas de Saúde (CID) por 28 anos. Para efeito de comparação, a homossexualidade deixou de ser considerada doença mental em 1990. No Brasil, o Conselho Federal de Psicologia proibiu em janeiro de 2018 que psicólogos tratem a transexualidade como doença ou anomalia.
Os desafios na vida da população são imensos, desde as dificuldades no acesso à saúde, a emprego e moradia por estigmatização e preconceito. Essa realidade absolutamente violenta faz parte do dia a dia a que a população trans é submetida. Por isso, é mais do que urgente que tenhamos mais pessoas trans ocupando espaços de poder, que possamos construir mais políticas públicas voltadas para essa população e que tenhamos ações contundentes para que todas as pessoas trans possam viver em segurança e dignidade.