Foto: André Londres Fernandes

Em iniciativa inédita, a Articulação Nacional de Agroecologia (ANA) promoveu uma mobilização em todos os estados durante o período das eleições municipais e coletou assinaturas de candidatos/as a prefeito/a e vereador/a em mais de 500 municípios. Muitos deles foram eleitos e, a partir dessa aproximação histórica, o diálogo entre as organizações agroecológicas e os futuros mandatos e governos será potencializado nos próximos anos.

Para fazer um balanço sobre esse processo e apontar os próximos passos, conversamos com Flavia Londres, engenheira agrônoma da Secretaria Executiva da ANA. Na entrevista, ela explica como foi a conquista de adesões às propostas da carta-compromisso e a metodologia da pesquisa que evidenciou mais de 700 políticas municipais exitosas em agroecologia em todo o país. A expectativa é que se fortaleça a relação da sociedade civil com os governos locais na perspectiva da implementação de políticas públicas que já mostraram resultados e que podem ser aperfeiçoadas e ampliadas.

Qual o balanço dos resultados das urnas em relação aos prefeitos e vereadores que foram eleitos e assinaram a Carta Agroecológica?

É um balanço muito positivo! A ANA fez um esforço descentralizado para apresentar e debater propostas com candidaturas do campo progressista em todos os estados do país. E, de fato, conseguimos participar do debate eleitoral de uma forma bastante intensa. Em centenas de municípios foram realizados debates, lives com candidatas/os, participação em atividades de campanha, e tudo isso resultou na adesão de 1.240 candidaturas no Brasil todo, o que não é pouca coisa. Cerca de 40% eram candidatas mulheres, uma participação muito importante.

Além de assinarem a carta-compromisso com a agenda do movimento agroecológico, muitas/os candidatas/os incluíram propostas nela contidas em seus programas de governo ou de mandato – o que revela a dimensão pedagógica desse processo.

As propostas que apresentamos foram baseadas num grande levantamento nacional de leis, políticas e programas municipais que já foram implementados e mostraram resultados. Isso deu muita concretude à agenda, ficou muito claro que o que estamos propondo é viável, está ancorado na realidade, dialoga de forma muito direta com as necessidades e demandas das populações do campo e da cidade.

Cerca de 14% das/os candidatas/os que assinaram nossa carta-compromisso foram eleitas/os, o que é bastante significativo. São 47 prefeitas/os e 125 vereadoras/os (incluindo aí mandatos coletivos) dispostas/os a implementar ações no campo do abastecimento alimentar, das compras institucionais de produtos da agricultura familiar, da criação e do fortalecimento de circuitos curtos de comercialização, da defesa dos territórios de povos e comunidades tradicionais, da educação contextualizada, do combate à violência contra as mulheres e vários outros que se relacionam com a agroecologia.

Logo após a divulgação dos resultados das eleições, muitas/os desses recém-eleitas/os procuraram as organizações e redes de agroecologia que pautaram esse debate em suas regiões sinalizando que, agora, “precisarão de ajuda” para implementar as propostas assumidas, e isso é maravilhoso! É justamente esse diálogo, a parceria efetiva entre Estado e sociedade civil o que pode fazer a diferença.

Fale um pouco desse processo coletivo da pesquisa, a metodologia e as expectativas frente aos resultados.

Nós partimos do pressuposto de que existe uma grande diversidade de iniciativas municipais de apoio à agroecologia e à agricultura familiar e de promoção da segurança alimentar que, na maior parte das vezes, são desconhecidas pelo conjunto da sociedade. Nós sabíamos, inclusive, da existência de muitas políticas públicas que derivaram de experiências da sociedade civil ou que se inspiraram em ações criativas desenvolvidas por grupos, comunidades e redes sociotécnicas atuantes nos territórios. Decidimos então realizar um levantamento dessas políticas com o objetivo de dar visibilidade a elas, mostrar o que já existe, que é possível implementar políticas consistentes mesmo com orçamentos municipais limitados.

Organizamos assim, a partir de agosto de 2020, um mutirão nacional de pesquisa-ação envolvendo 34 pesquisadoras/es nos 26 estados da federação, articuladas/os por meio das redes estaduais de agroecologia. Nós sabíamos que encontraríamos muitas iniciativas, mas ficamos surpresos com o resultado: em menos de dois meses, identificamos mais de 700 políticas, programas e leis municipais, em 531 municípios. E isso é apenas uma amostra de um universo certamente bem maior. Esses dados foram organizados numa planilha e em um mapa interativo que estão disponíveis para consulta online. Publicamos também um documento que traz uma síntese dos principais resultados encontrados, agrupando as iniciativas em 13 campos temáticos. Essas ações envolvem temas como moedas sociais e vales-feira; gestão de resíduos; apoio a grupos produtivos de mulheres e de jovens; inclusão produtiva por meio do apoio à adequação às normas sanitárias; agricultura urbana e periurbana; alimentação escolar; conservação, uso e comercialização de produtos da sociobiodiversidade; práticas integrativas de saúde envolvendo a produção e o uso de plantas medicinais; restrição ao uso de agrotóxicos; e muitos outros.

Esse material traz um grande conjunto de referências de iniciativas reais, já testadas e implementadas, que podem se multiplicar e inspirar a criação de outras em muitos lugares. Ele foi o principal subsídio para a elaboração, também de forma coletiva, do conjunto de propostas que foi apresentado e debatido no processo das eleições municipais. E acreditamos que possa também, num futuro próximo, aportar ensinamentos importantes e contribuir para a construção participativa de novas políticas municipais, ajustadas às necessidades e realidades locais.

Quais serão os próximos passos da ação da ANA nos municípios? Haverá um diálogo e monitoramento desses candidatos que tomarão posse em 2021?

Sem dúvida, sabemos da nossa responsabilidade de seguir com esse trabalho de incidência política nos municípios. Expectativas foram geradas! Historicamente, foi a mobilização de movimentos sociais populares o motor principal para a conquista de direitos e para a construção de políticas, programas e ações voltadas a promovê-los. E é importante lembrar que as políticas públicas construídas e executadas em diálogo e parceria com grupos e organizações da sociedade civil são aquelas que melhor se adequam às realidades locais, as que melhor atendem às reais demandas da população e alcançam maior efetividade. As iniciativas que nós mapeamos mostram isso: a democracia e a participação social são princípios e condições necessárias para o sucesso das ações.

Nesse sentido, as organizações do campo agroecológico estarão agora abertas ao diálogo, ativas nos espaços de participação democrática, incluindo os conselhos municipais, e dispostas a colaborar e construir junto políticas públicas e legislações. Estarão atentas também para monitorar e cobrar os compromissos assumidos nas campanhas eleitorais. É importante lembrar que muitas redes e organizações da sociedade civil têm vasta experiência na execução de políticas públicas, como, por exemplo, os serviços de Assistência Técnica e Extensão Rural (Ater) contratados por chamada pública, os programas de convivência com o semiárido envolvendo a construção de cisternas para captação e armazenamento de água de chuva e os projetos de conservação, multiplicação e distribuição de sementes crioulas. Essa experiência é preciosa e pode contribuir muito para a construção e o aprimoramento de novas políticas.

Estamos publicando a lista de eleitas/os que assinaram nossa carta-compromisso e, nas próximas semanas, realizaremos reuniões regionais para avaliar a campanha Agroecologia nas Eleições e, também, planejar ações a serem promovidas nos municípios a partir do próximo ano visando o diálogo e a incidência junto às prefeituras e câmaras de vereadores.

Qual a avaliação da ANA sobre o contexto político brasileiro e quais as perspectivas de ampliação das pautas agroecológicas no meio rural e nas grades cidades?

Vivemos um tempo de severos desmontes nas políticas públicas federais. Desde o golpe que destituiu, em 2016, o governo democraticamente eleito de Dilma Rousseff, as políticas federais voltadas ao fortalecimento da agricultura familiar e da agroecologia e à promoção da soberania e segurança alimentar e nutricional vêm sendo enfraquecidas ou descontinuadas. Também foram dissolvidos os espaços democráticos de participação social, nos quais se dava, institucionalmente, o diálogo entre o Estado e a sociedade civil e que foram cruciais para a construção de importantes instrumentos e políticas.

É preciso agora recomeçar a construção desde as bases, desde os municípios. O processo eleitoral de 2020 foi um grande aprendizado. Conseguimos projetar a agenda da agroecologia no debate político nacionalmente, alcançamos uma visibilidade importante para nossas propostas. Avançamos também no sentido de mostrar que apoiar a agroecologia interessa a toda a sociedade. Nossa pauta articula questões como a produção de alimentos sem venenos e a promoção da saúde coletiva, a geração de trabalho e renda envolvendo relações justas, a conservação da água e da biodiversidade, a construção de perspectivas para as juventudes, o direito à terra e ao território, a valorização da cultura popular, o direito à comunicação, o combate à violência de gênero… são questões que dizem respeito a todas/os nós.

Estamos confiantes de que saímos fortalecidas/os desse processo e de que conseguiremos avançar na conscientização política da população e na criação, ampliação de escala e multiplicação de iniciativas que promovam o desenvolvimento com justiça social. É a partir dos locais que vamos reconstruir as bases para voltar a incidir de forma consistente no plano nacional e contribuir para o restabelecimento da democracia. A ação política do movimento agroecológico vem de longe. Olhamos para frente agora com a certeza do nosso compromisso histórico e a confiança na nossa contribuição para o debate político nos planos municipal, estadual e nacional. Seguiremos debatendo, propondo e, coletivamente, construindo as políticas de futuro para o nosso país.

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