Educação Contextualizada: construindo cidadania no semiárido
A proposta de educação contextualizada em Itapipoca (CE) tem transformado o modelo pedagógico da região e apresentado mais envolvimento dos alunos e alunas no combate à evasão escolar.
Por Carla Galiza dos Santos
A proposta de educação contextualizada em Itapipoca (CE) tem transformado o modelo pedagógico da região e apresentado mais envolvimento dos alunos e alunas no combate à evasão escolar. Voltada à realidade local dos três climas, que envolve praias, serras e o sertão, a Lei Municipal nº 094/2017 fortaleceu esse processo ao adequar o ensino local às legislações educacionais estaduais e nacionais. Essa é mais uma experiência identificada pela campanha Agroecologia nas Eleições, promovida pela Articulação Nacional de Agroecologia (ANA) em todo o país.
O projeto Do meu lugar, a nossa história foi desenvolvido pela Cáritas Diocesana no distrito de Arapari e serviu de inspiração para o debate sobre modelos de educação no campo para o semiárido, de modo a conciliar os componentes curriculares às realidades locais. Nesse contexto, foi aprovada a lei e hoje as 59 escolas localizadas na zona rural, das 114 do município, dispõem desse formato pedagógico-cultural. Existem também seis escolas estaduais, quatro universidades e três pólos de educação à distância atendendo, ao todo, quase 24 mil crianças e adolescentes, segundo a Secretaria de Educação Básica de Itapipoca.
Desde 2018, foi estabelecido um convênio entre a Cáritas e a Secretaria Municipal de Educação para formação contextualizada ao semiárido de educadores (as) das escolas rurais da rede municipal. Os oito módulos serão finalizados ainda neste ano envolvendo cerca de 560 professores. A proposta político-pedagógica alternativa é baseada no método do educador pernambucano Paulo Freire, que faleceu em 1997 mas deixou um vasto legado com obras publicadas em todo o mundo. Segundo o pensador, a educação precisa ser popular e ligada à vida cotidiana dando consciência política ao aluno frente à realidade onde está inserido.
Os educandos são estimulados a participar mais das aulas, através de uma linguagem adequada à cultura local, e os pais do processo pedagógico a partir de reuniões mensais. O ensino busca uma leitura não só dos livros didáticos, mas também da realidade em diálogo com a diversidade de contextos sociais, políticos, econômicos e ambientais da região. A ideia de contextualização se funda no princípio de inter e transdisciplinaridade na construção do conhecimento, contrapondo-se à falência das grandes narrativas da ciência e da pedagogia modernas: a neutralidade, formalidade e universalidade. Um dos objetivos é a descolonização da educação, do estereótipo do/a nordestino/a e a difusão do paradigma de convivência com o semiárido. A grade curricular prevê a adaptação dos conteúdos à geografia, à cultura, à identidade e às especificidades da locais.
De acordo com o secretário de Educação Básica de Itapipoca, Paulo Henrique Barroso, tudo começou com a busca por uma proposta pedagógica que abordasse as características da região de acordo com as realidades das comunidades. A lei que regulamentou essa proposta no município, com base no Documento Curricular Referencial do Ceará (DCRC), adequando-se às legislações nacionais, contribuiu muito nesse processo. O projeto desenvolvido pela Cáritas Diocesana em Arapari tem assessorado o trabalho e inspirou as demais escolas, complementou.
“O principal desafio é garantir o processo de formação dos/as professores/as, visto que é uma rede muito grande e são muitas realidades distintas. Outro é a aquisição de materiais de apoio, pois para essa temática não existem materiais disponíveis no mercado. Estamos ressignificando nossa ação pedagógica. A universalização da educação contextualizada no município será uma consequência desse processo nas escolas rurais. Percebemos a motivação dos alunos que são nossos maiores e melhores indicadores de resultados”, afirmou.
O trabalho é desenvolvido de forma integrada com outras secretarias, como a de Saúde, que faz ações preventivas de combate a doenças comuns na região, e o Instituto de Meio Ambiente, que promove diversas ações, dentre elas a implantação de hortas nas escolas. Uma das metas é envolver mais as famílias em unidades ecológicas com os quintais produtivos para servir como um laboratório de aprendizagem das escolas e fortalecer a agricultura familiar local.
Agroecologia e a Educação Contextualizada
A prática agroecológica como modelo de produção e reprodução da vida tem sido utilizada como fórmula para a construção e disseminação de novos conhecimentos na formação dos sujeitos do campo. É motivada uma nova relação do ser humano e a natureza, na busca da convivência com o semiárido e promovendo a produção rural sustentável. A educação é estratégica para um novo modelo de desenvolvimento territorial a partir do aprendizado das crianças, jovens e adultos. Os professores estão se formando com essa mentalidade e desenvolvendo metodologias para formação técnica e mais ampla dos (as) alunos (as). Os processos de estocagem de água, alimento e sementes, por exemplo, cujos saberes ancestrais são transmitidos por gerações, são fundamentais. A teoria é adaptada à realidade proporcionando a autonomia dos povos.
São realizadas oficinas temáticas, como História e cultura local, para formação dos (as) docentes visando a qualificação didático-pedagógica. Sempre proporcionando uma articulação entre os saberes escolares e os comunitários tentando diminuir a distância entre o que é aprendido na escola e o que se vivencia no dia-a-dia do meio rural. De acordo com José Gilmar Magalhães, da coordenadoria pedagógica do projeto, o ensino ajuda a combater o histórico preconceito em relação à região, muitas vezes lembrada por suas mazelas, falta d’água, fome, seca e morte de animais.
“É preciso desmistificar esse território para que a sua verdadeira identidade seja revelada no semiárido de riquezas e alegria, de musicalidade e prosperidade, de cores, sons e sabores específicos. A educação é a porta de entrada para se trabalhar esse outro ponto de vista e ressignificar, reaprender e redirecionar o nosso olhar para o semiárido brasileiro. São aprendizagens diferenciadas, partindo do contexto local para o global e do global para o local”, afirmou.
Os professores recorrem a termos regionais e de uso habitual dos alunos para se aproximarem da cultura local, destaca Gustavo Felipe Araújo, educador na Escola EEB Jerônimo de Freitas Guimarães. A apresentação de situações fictícias utilizando objetos e aspectos locais também é uma abordagem nas aulas, acrescentou. “Fazemos aulas de campo nos arredores da escola e da comunidade, na busca de um resgate cultural e histórico. É de extrema importância dar voz ao aluno para ele expressar sua opinião e relatos, que muitas vezes demonstram o entendimento em relação ao assunto da aula. Trabalhamos também a importância da agricultura familiar e das plantas medicinais nas aulas de ciências, através do manejo das ervas no canteiro da escola”, explicou.
São inúmeros os desafios enfrentados nestes últimos dois anos no processo de implementação do projeto, dentre eles, o maior é ampliar a proposta à diversidade das escolas urbanas no município. Alguns professores ainda estão se adaptando, pois assustou a quebra de alguns paradigmas, relatou uma diretora de um colégio. A ausência de políticas públicas para o povo do campo e a escassez da região também são barreiras na integração e permanência dos jovens nas escolas.
Edição: Eduardo Sá
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