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Por Marcelo Mucida / @planetafoda*

Um emaranhado de palavras pode falar sobre muitas coisas. Ou provocar silêncios. Palavras que chegam até diferentes lugares e que podem pairar sobre muitas superfícies.

Mas apesar de compartilharmos linguagens, os significados não estão completamente dados. A disputa de sentidos é constante, a partir do momento em que passamos a perceber a vida em comunidade.

Estes são alguns dos assuntos que atravessam a conversa com Francisco Mallmann, artista e pesquisador interdisciplinar, de Curitiba.

Entre os seus processos de escrita, Francisco propõe olhares para a coletividade.

Em uma entrevista que se desdobra por muitos temas, ele conta um pouco sobre o desenvolvimento das suas publicações, incluindo o lançamento que acontece neste ano. O artista também compartilha percepções sobre o potencial de reivindicação e de reformulação que pode se fazer presente entre criações desenvolvidas por pessoas LGBTQIAP+.

Confira a seguir o diálogo na íntegra. 

Foto: Miro Spinelli

Como é, para você, propor formas, formatos para a palavra, no sentido de fazer com que a escrita possa chegar até outras pessoas?

Acho que tem uma coisa na minha formação que tem muito a ver com o modo como eu desenvolvo a escrita, e como eu passo a fazer isso de um modo mais sistematizado, que é um pouco esse lugar meio interdisciplinar, que é fazer isso muito próximo das artes cênicas.

Eu tenho essa dupla formação que é em jornalismo e artes cênicas e daí a minha feitura e o meu trabalho com a palavra vão se dar muito nesse trânsito entre vários espaços, nesse lugar meio fronteiriço. Eu desenvolvo isso de muitos modos e em diferentes lugares, mas sempre eu tive a impressão de que eu levava alguma coisa de um campo pro outro.

Então isso de fazer escrita, de criar contexto para a palavra dentro de uma sala de ensaio, dentro de lugares mais performativos para a criação, sempre me deu uma impressão de que escrever não era sozinho, escrever é estar junto porque tem isso de fazer testes e eu gosto muito de fazer dramaturgia dentro da sala de ensaio.

Pensar essas estratégias de como escrever junto. Ainda que seja eu que no fim do dia vá reunir e fazer aquele trabalho meio solitário de organização, sempre me interessou pensar nesses modos de fazer que de alguma forma emancipem a própria ideia de escrita, mas, mais do que isso, a ideia do que é palavra. Pensar esses caminhos orais antes da palavra se tornar texto, pensar a palavra um pouco mais tridimensionalmente, que daí depois também tem a ver com as coisas que eu vou testar no tecido, ou nessas coisas em grande escala, mas que se relacionam com o desejo de tornar tanto esses processos de escrita, como os de leitura, ou esses processos de relação com a palavra, em algo menos solitário, menos unitário e mais coletivizado.

Eu acho que isso, evidentemente, envolve a própria atividade da escrita, de se debruçar sobre a escrita, elencar palavras, pensar narrativas, mas penso que tem um lugar da própria noção de sentido da coisa. Eu tenho gostado de colocar essas frases, essas coisas que crio num espaço público, num lugar onde isso seja visível. E eu acho que o teatro tem isso de estar na arena pública, estar sempre dando para a outra, para o outro a coisa em si. Acho que aí a gente coloca em disputa o que a palavra é, mas também o que a palavra significa… O que está sendo dito ali? Quem é que atribui sentido a isso?

Têm alguns anos já que a gente aqui em Curitiba tem a Membrana, que a gente chama de grupa de escritoras e que é um coletivo de pessoas que escrevem. A gente criou o coletivo chamando esse trabalho de uma criação de uma rede crítico-afetiva pra gente partilhar os nossos trabalhos e ouvir coisas. E a gente divide, evidentemente, o trabalho em escritas variadas, porque tem gente que escreve dos mais distintos lugares, produz textos dos mais distintos contextos, mas tem uma relação um pouco da gente dividir a vida. Então a gente se encontra nesse desejo de pensar como é que a gente pode fazer com que esses processos sejam compartilhados para além um pouco dessas recepções mais normativas, que já estão postas. Todas essas artistas estavam interessadas em saber como a gente conseguiria se relacionar processualmente com o que é escrever, mas também a gente começou a entender o que poderiam ser esses meios e esses modos de fazer a escrita circular. Então a gente começou a criar contextos e materiais mesmo, publicações. A primeira que a gente fez era um envelope e aí cada uma das artistas colocou algum material com escrita lá dentro… Enfim, de novo já tem esse chamado meio performativo, um chamado para que os modos de fazer estejam colocados enquanto algo a ser discutido.

Nessa grupa, eu entendi algo muito bonito sobre fazer partilha de processos. Acho que a gente no teatro, nas artes cênicas, tem uma relação com o processo que já está muito mais posta, que isso vai ser feito coletivamente, que é um monte de gente envolvida, e que tem essas interlocuções mais postas. Mas na escrita, inclusive, tem uma manutenção desse lugar meio romântico, do que é o processo de escrever, que é essa coisa da inspiração no seu grau máximo, e então o texto se faz via delírio ou não sei mais o que… Então essas pessoas me ensinaram muito sobre o que é você ofertar generosamente o seu trabalho para ele ser pensado junto. E não curiosamente essas pessoas em sua maioria são pessoas LGBTQIAP+ e mulheres, e eu acho que pensar a escrita nesses grupos e para essas pessoas vai se aproximando de lugares muito vitais sobre uma busca de uma atividade de sobrevivência mesmo. Que é você criar um coletivo, que é você criar uma ideia de comunidade, uma atividade em que você consiga se formular, consiga formular esses mundos em que as nossas existências sejam possíveis, mas também articular os mais variados modos de fazer essa escrita, seja via denúncia, seja via um poder de imaginação, um desejo de fazer coletivo…

É muito bonito perceber como, ao mesmo tempo em que essa grupa de encontros tinha uma discussão que se dava muito pela linguagem, também envolvia coisas que eram e não eram sobre escrita, que eram sobre a vida, sobre esse desejo de fazer a existência ser possível, sendo atravessada pela escrita. Eu acho que quando a gente fala sobre a criação de pessoas LGBTQIAP+, me parece que tem sempre esse potencial de reinvindicação que é sempre transbordante. A gente quer reivindicar esse lugar de poder discutir linguagem, de poder discutir pautando do jeito que a gente quer pautar e não sendo classificadas pura e simplesmente como pessoas LGBT fazendo arte LGBT para pessoas LGBT. Para mim, tem sempre essa densidade, esse tom, como várias outras criações de pessoas que têm marcadores via essas diferenças, sejam elas quais forem. Parece que tem uma outra pulsação e eu me interesso por olhar para isso.

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Dentro desses processos, como veio o impulso para você lançar o seu primeiro livro, em 2018?

Antes desse lançamento, saíram alguns textos meus em antologias de outras artistas e, para mim, foi um desespero completo ver o negócio impresso, porque como eu estava pensando e articulando a escrita muito nesse lugar da vibração e da pulsação e próximo do acontecimento cênico, ao ver algo impresso, foi uma coisa em que eu entendi que não dava mais para mudar, não tinha ninguém falando esse texto, e é isso, a coisa está no mundo e as pessoas vão se relacionar com isso de jeitos que você não vai nem conseguir cogitar. Mas também é uma maravilha porque é muito interessante como a materialidade do livro vai, e isso independe de eventos, dessa coisa que a gente está habituado a produzir… Sei lá até onde o livro vai.

Os materiais que estão nesse livro de 2018, “Haverá festa com o que restar”, eles são de 2016 em diante. Foi um trabalho muito específico porque eu não sabia o que era fazer um livro, eu não sabia o que a coisa ia ser, eu só desconfiava. Acho que tem algo muito importante nesse momento que é a pequena editora, que é a editora independente, que nesse caso foi a Urutau. Acho que atualmente a gente tem uma cena de editoração independente com muita gente pensando publicação de jeitos muito interessantes e eu percebo que não por acaso são muitas pessoas LGBTQIAP+, muitas pessoas pretas pensando isso, que é pensar o que é colocar como escrita e palavra e como materializar isso, que na verdade é uma coisa muito séria mesmo, quando a gente para pra pensar, especialmente para pessoas cuja voz, cujas palavras foram silenciadas histórica e socialmente. Acho que tem uma relação com isso de pôr no mundo, de reunir material e de se tornar autor, autora, autore, que é uma coisa muito específica e eu acho isso muito bonito, porque eu penso que entre tantas coisas, essas pequenas editoras estão revelando essa descentralização, estão revelando que a mídia tradicional, durante muito tempo, esteve completamente alheia e querendo estar alheia a essas vozes, a esses corpos e contextos.

Existe algo muito potente, muito poderoso aí, de toda ordem, da ordem estética, ética, política, social… Me interessa muito olhar para isso. E não por acaso o lançamento do meu primeiro livro aconteceu através de uma chamada pública da Urutau, que é a política de publicação desta editora, especificamente. São feitas chamadas públicas para todo o Brasil e essa que eu passei foi uma de 2017, voltada para as capitais do sul.

E então teve esse espanto, esse susto de publicar algo pela primeira vez, mas foi super bonito. No final das contas, o livro acabou entrando também num circuito, que eu nem entendo direito, que é um circuito de prêmios.

E foi a partir daí que eu entendi que esse era um lugar possível, porque foi um momento de uma girada muito forte, exatamente com essa noção de que a coisa estava no mundo e de que o livro é também esse meio pelo qual a gente vai construindo irmandades e alianças. Entender o livro como essa possibilidade de feitura de alianças, pra mim, é uma coisa extraordinária. Pra mim, aí residem os nossos esforços concentrados.

E aí acabou que depois você foi lançando outras publicações, certo?

Sim, a coisa foi acontecendo. Em 2019, acontece um megamini, que é uma publicação pequenininha, e no ano passado, também pela Urutau, saiu o “América”, que acabou sendo lançado durante a pandemia.

Agora em 2021, tem um que está para sair a qualquer momento, onde o processo mudou um pouco. Estou até tentando entender o que essa mudança está sendo, porque vai ser o primeiro livro lançado por uma editora maior, por um grupo grande com uma outra estrutura. Tem uma outra escala de distribuição também.

Tem sido bem forte o processo de editar esse livro novo, ainda que o meu processo de escrita siga sendo o mesmo e ainda que eu esteja interessado em algumas coisas que se repetem dos livros anteriores. Agora tem uma outra dinâmica acontecendo.

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O livro novo vai ser de poesia ou ele é diferente também na forma em que o texto se dá?

Ele também é de poesia, mas acho que tem uma coisa interessante sobre o meu percurso.

Em 2017, quando organizei o primeiro livro, ele tinha um caráter de reunião de algumas coisas que escrevi. Ainda que eu tenha criado uma narrativa inevitável pela ordem em que os poemas aparecem, eles não se relacionavam tanto entre eles.

Já para esse novo projeto, o “tudo o que leva consigo um nome”, eu estava interessado em criar uma narrativa que atravessasse o livro, que fosse transversal. Eu estava interessado em criar uma história via poemas. Ele tem uma relação um pouco diferente porque é uma voz, outra, que vai se formulando através dessa tentativa de se fazer poema. É uma pessoa que vai se conhecendo como alguém que está apto a fazer poema à medida que vai fazendo. Então tem um pouco desse exercício metalinguístico de alguém se descobrir poeta fazendo poesia.

Mas têm coisas que se repetem no meu trabalho, de algum jeito. É uma figura cujo gênero escapa, é uma figura que se refere a si no feminino mas que tem uma indefinição, tem um cenário físico meio fronteira, uma coisa meio entre os lugares e tem essa coisa que eu persigo que é um certo susto que nunca passa com a própria língua, com o próprio fato de ser um corpo marcado, com o próprio fato de ser uma pessoa que é dita dissidente. Isso tudo está ali.

Por conta disso, ele é um livro que se dá via narrativa, e que por isso tem muitas páginas. A gente fez uma escolha de edição que é a de um poema por página mesmo e então tem muito silêncio também, têm várias páginas em branco… Estou muito empolgado com esse livro, mas estou também com aquela sensação de que eu preciso entregá-lo logo.

No caso do “América”, eu acho que vi em algum lugar que você tinha pensado primeiro num formato de prosa e depois acabou que ele saiu como poesia também. Você pode comentar um pouco sobre esse processo?

É exatamente isso, porque o “América” é um projeto maior que envolveu a escrita de uma dramaturgia, que num primeiro momento não era poesia, mas que acabou sendo editada como um livro de poesia.

Ele tinha esse outro formato, porque é um trabalho que vem da sala de ensaio, vem da prática do corpo presente. No início de “América”, tem uma indicação em que eu digo “esse texto foi escrito em voz alta, para ser lido em voz alta, para ser esquecido em voz alta”, porque de fato eu escrevi esse texto em voz alta a partir de um programa performativo que era: eu entrava em sala de ensaio com um gravador (durante três meses) e eu me propunha alguns convites para falar desenfreadamente. Com o tempo, eu fui chegando em frases que se repetiam, fui fazendo um processo muito invertido do que eu estava habituado a escrever.

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Na verdade, o primeiro material de “América” é um monte de áudios, que depois eu transcrevo, edito, transformo e sintetizo nesse texto, que volta a ser falado numa ação pública. O trabalho também é isso. Eu digo essas palavras em voz alta em ações que já aconteceram em diferentes lugares, inclusive em espaços públicos, e que na verdade é bem simples. Eu leio nu, de costas, esse texto.

Eu pensei em fazer com que isso fosse uma partilha, uma espécie de acontecimento mínimo espalhado na cidade, mas que a gente pudesse se encontrar, se reconhecer e fazer essa vibração se espalhar.

Tem um pouco desse desejo de saber como a palavra, o sentido, a narrativa, são alterados quando a gente divide o espaço, o tempo e essa construção. Muito interessado em saber como essa história vai ser feita junto, porque acho que a literatura confundida com a performance, ou a escrita confundida com estas ações que eu proponho, trazem esse desejo de colocar pra jogo, para que a coisa seja uma construção coletiva.

Junto com esse processo, tudo ao mesmo tempo, eu crio a bandeira, a AMÉRICA É MARICA. Durante a feitura do texto, eu achei esse termo “marica”, que de alguma forma está no trabalho porque é esse sinônimo para bicha no espanhol, mas que também já está incluído em várias regiões do Brasil. E aí quando eu achei a palavra marica dentro de América, aquilo me levou para lugares tão fortes sobre isso que a gente está reivindicando e fazendo… É uma história de tanta negação, e então ver no interior desse continente que a gente habita, com toda a contradição, e que é invadido, com genocídio atrás de genocídio, achar ali a palavra que de alguma forma nos designa, encontrar ali dentro foi muito forte e eu pensei que eu gostaria de tornar isso uma materialidade expositiva, uma materialidade da ordem da instalação.


Mas como estava tudo sempre integrado, o primeiro gesto, o primeiro movimento da ação “América” era o de colocar a bandeira no espaço onde ela iria acontecer, numa relação de fincar a bandeira mesmo, que também vai um pouco pra esse lugar da disputa, porque a bandeira tem esse lado meio territorial, nacionalista… Pensar essas fronteiras, pensar o que é nação, o que é pátria, o que é isso tudo. E aí, a partir desse gesto, o trabalho já começava de uma forma muito interessante, porque muitas vezes gerava um estranhamento até que as pessoas percebessem o que estava escrito ali, de fato.

Ali eu entendi que parte desse trabalho é colocar isso em disputa, é produzir esse ruído mesmo.

E o que você pode compartilhar como forma de concluir esta conversa?

Eu tenho pensado um pouco em relação ao meu trabalho e em relação a tudo e, de fato, eu acho que o que vários artistas LGBTQIAP+ têm me ensinado é sobre fazer anúncios, é sobre ativar de fato esse poder imaginativo, sobre a gente se concentrar na formulação de presentes e futuros possíveis pra gente.

Acho que a gente gasta muita energia e muito tempo respondendo questões que não são nossas, que não têm o nosso desejo implicado, que são de temas, assuntos e questões de coisas que a gente nem gostaria de estar tocando propriamente, mas que por demandas externas a gente toca.

Eu tenho pensado nisso, sobre como passar da denúncia. E eu acho importante que a gente siga denunciando tudo isso que há pra ser denunciado, mas como a gente não se adoece? Não se concentra apenas nesse potencial?

Como a gente, num gesto de generosidade com nós mesmos, e com toda a complexidade, toda a imensidão e toda a diferença que temos enquanto comunidades, grupos, como podemos usar essa energia que é vital, que é libidinosa, que é política, estética, para produzir a formação daquilo que pode vir a ser, com essas presenças todas que a gente saúda, com quem a gente faz história?

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Outras palavras não se fazem necessárias para encerrar esse texto. Acompanhe os trabalhos desenvolvidos por Francisco através do seu perfil no Instagram: @francisco.mallmann

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Foto: Luana Navarro

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