Por Fernanda Merizio

A 17ª edição do Festival Internacional de Filmes de Mulheres de Salé marcou a memória de todos! O festival, que ocorre anualmente na cidade de Salé, no Marrocos, oferece uma oportunidade única de descobrir a perspectiva de diretoras de todo o continente africano e do mundo, ao mesmo tempo em que permite uma troca enriquecedora sobre o papel das mulheres na indústria cinematográfica.

Os filmes em competição este ano foram realizados por mulheres de mais de 20 países, com produções da África, América Latina, Ásia, Europa e América do Norte. Entre as obras notáveis, o documentário senegalês Lébou, dirigido por Ndèye Soukeynatou Diop, foi um dos pontos altos da programação.

Lébou é um filme íntimo e profundo que aborda o processo de reconciliação da diretora senegalesa com sua identidade, com a sua comunidade e com seus ancestrais através do cinema. O filme expõe a dura realidade que enfrentam os Lébous – comunidade tradicional de pescadores no Senegal – incluindo conflitos territoriais agravados por questões ambientais e políticas. O documentário também evidencia a luta pessoal da diretora para que sua comunidade seja reconhecida tanto pelo Estado senegalês quanto no cenário internacional.

A esperança se manifesta durante todo o filme, mas o mar e a morte também avançam e se fazem notar no território dos Lébous. A diretora do filme se coloca então em cena e pede autorização às entidades espirituais Lébous para conduzir sua luta através da câmera, enquanto o Estado e as autoridades permanecem cruelmente ausentes. Como explica Soukeynatou Diop: “Eu precisava me colocar em perigo primeiro antes de colocar em perigo tudo o que aparece no meu filme. Todos os meus personagens estão cientes e aceitaram ser filmados. Isso também faz parte do que me encorajou a me filmar.

Cine NINJA: Seu filme é uma viagem ao encontro de si mesma, do mar, da sua cultura, dos seus ancestrais, assim como do reconhecimento de sua origem Lébou. De onde surgiu esse desejo e, principalmente, essa coragem de percorrer esse caminho – ao longo de 10 anos – para finalizar esta obra cinematográfica tão íntima?

Foto: Divulgação

Ndèye Soukeynatou Diop: Sou Lébou. Nasci em Dakar e cresci lá! Os Lébous formam uma pequena comunidade no Senegal. Pequena em número, mas muito conhecida pelos senegaleses. Após finalizar meu ensino médio fui para Saint-Louis, onde passei 8 anos fazendo meus estudos universitários. Esse período foi muito importante para mim pois desenvolvi uma visão tanto interna quanto externa da comunidade.

Os Lébous foram parte de uma comunidade que não é muito bem vista no Senegal. Desde a minha infância, me dizem que somos reclusos, que não gostamos de abertura nem de nos misturarmos com os outros. Alguns nos veem como seres brutais e agressivos, ou mesmo com temperamentos selvagens. No entanto, temos nossas próprias realidades. Apesar dessas percepções, tenho um profundo orgulho de pertencer a essa comunidade e às suas diversas tradições.

Com o tempo, tomei consciência dos problemas que minha comunidade enfrenta. Somos ameaçados pelas indústrias. A Sococim se instalou perto da comunidade Lébou o que gera conflitos fundiários desde 1948. Há uma expropriação de nossas terras, muitas vezes com a cumplicidade das autoridades municipais e do Estado senegalês.

A liberdade dos Lébous está sendo cada vez mais desrespeitada. Estamos perdendo gradualmente nosso território tradicional. Somos conhecidos por sermos um povo ligado à terra, ao que nos pertence. Ouço frequentemente: “Ah, os Lébous! Porque eles se apegam tanto ao seu solo e às suas terras?”. Mas quem não ama suas terras? Quem não ama seu território, sua história, sua identidade? Por que não teríamos o direito de querer preservar nossa aldeia tradicional?

Além dos conflitos com a Sococim, outra ameaça preocupante pesa sobre nossas comunidades costeiras: o mar está avançando devido ao aquecimento global. Dois cemitérios já desapareceram. Quando éramos crianças, podíamos contornar os cemitérios ao longo da praia. Hoje, a água levou todos os túmulos. Não resta nada lá. Algumas mesquitas também foram destruídas.

O que mais me entristece é que todos observam sem reagir. Tenho a impressão de que nos dizem: “Vocês se recusam a partir, a nos ceder suas terras. Muito bem, então deixamos vocês frente à natureza. O mar acabará por expulsá-los.

CN: O filme nasceu, portanto, de uma necessidade pessoal de lutar contra pela permanência da sua comunidade?

Ndèye Soukeynatou Diop: Sim. Diante de todas essas injustiças, há raiva e o desejo de defender minha comunidade! Eu não tinha muitos recursos, então tinha duas alternativas para contar nossa história e lutar à minha maneira: escrever um livro ou realizar um documentário.

Após meu mestrado em literatura africana na universidade, imediatamente comecei um mestrado em direção e criação de documentários. Durante esse mestrado, escrevi a primeira versão do roteiro deste filme. No começo, eu só queria filmar a pesca, o trabalho dos vendedores de peixe e das fábricas. Queria denunciar as injustiças relacionadas à exploração da pesca. De fato, há um risco constante para os pescadores quando vão ao mar. No entanto, quanto mais nos afastamos da água, mais dinheiro ganhamos nessa atividade. Assim, observa-se que os vendedores de peixe ganham mais do que os pescadores em geral. Para mim, havia uma injustiça econômica a ser corrigida, e eu queria denunciá-la.

À medida que as filmagens avançavam, o filme foi tomando cada vez mais forma. Participei da residência da AfricaDoc e percebi que precisava aprofundar a escrita do filme. Assim, o mundo dos Lébous emergiu, e minha reivindicação de pertencimento a essa comunidade se intensificou. A pesca é a principal atividade dos Lébous; tudo gira em torno dessa prática. Os homens saem para o mar, enquanto as mulheres transformam os produtos pesqueiros e os vendem nos mercados.

CN: Foram dez anos entre a escrita e a pós-produção do seu filme. Quais foram as dificuldades que você enfrentou?

Ndèye Soukeynatou Diop: A sociedade Lébou é muito complexa, e isso se refletia na escrita do filme. Como criar uma obra que dê conta dessa complexidade? Foi tão difícil que, em determinado momento, desisti desse projeto. Fui para o Marrocos para trabalhar em outro projeto na residência AfricaDoc, mas logo percebi que esse outro projeto carecia de profundidade. Assim, enquanto estava em residência para outro projeto, a necessidade de retomar esse filme aflorou.

Filmei de 2014 a 2016, mas também enfrentei problemas financeiros. Inicialmente precisava de um cameraman capaz de filmar enquanto eu estava na frente da câmera. Após as filmagens, também tivemos dificuldades em encontrar financiamento para a edição. Portanto, passei por períodos de incerteza. Mas a esperança sempre esteve presente, pois me doía ver meu filme estagnar enquanto minha comunidade enfrentava tantas dificuldades.

CN: Como você conseguiu montar o filme?

Ndèye Soukeynatou Diop: O Centro Yennenga (@centro.yennenga) de Alain Gomis em Dakar me ofereceu uma montagem gratuita, que foi realizada por estudantes durante o ano de 2023. Um estudante burquinense e um senegalês trabalharam em dupla na edição. A montagem se tornou uma outra forma de escrita, pois foi necessário encontrar uma estrutura para a narrativa do filme.

Não me arrependo de ter levado dez anos para realizar este filme. Esse tempo contribuiu para a escrita e permitiu dar corpo ao filme. Isso também me ajudou a me reconciliar com minha comunidade e sua realidade. Tudo isso faz parte da construção que ajudou o filme a tomar forma.

Foto: Divulgação

CN: Há um contraste importante nas imagens: as cores vivas dos barcos, a força dos braços dos pescadores, a voz de resistência política desse homem que aspira a construir um sindicato de pescadores, o olhar histórico de Pape Mona, bem como a força de suas experiências espirituais, encontram-se de alguma forma em dissonância com as imagens da sujeira da cidade e do mar, da construção de complexos industriais de concreto, e da destruição das casas costeiras com o avanço do mar. Imagino que você já tenha percebido isso na escrita do seu filme?

Ndèye Soukeynatou Diop: Eu definitivamente precisava voltar e tecer relações para poder fazer o filme, mas já sabia o que queria filmar. Os Lébous foram atacados por diversos Estados do Senegal em uma luta pelo território. Portanto, eu tinha consciência da necessidade de um olhar histórico sobre a comunidade.

CN: O filme expressa uma falta de responsabilidade por parte do Estado.

Ndèye Soukeynatou Diop: Sim. Eu procurei questionar as autoridades, mas elas não quiseram responder. Fui várias vezes à frente do escritório do prefeito! Também tentei entrar em contato com um responsável pela fábrica.

CN: Sua imagem está presente ao longo do filme. Quais questões você fez no seu exercício de encenação?

Ndèye Soukeynatou Diop: Eu precisava me colocar em perigo primeiro antes de colocar em perigo tudo o que aparece no meu filme. Todos os meus personagens estão cientes e aceitaram ser filmados. Isso também faz parte do que me encorajou a me filmar.

Apareceram até personagens inesperados. Uma senhora que não estava informada sobre o filme nos viu entrar na casa de sua vizinha e quis saber o que estava acontecendo. Ela veio, se acomodou e manifestou interesse, expressando suas necessidades. Além disso, há pescadores que me impediram de filmar na praia. Essas são pessoas que saíram de seus países para vir ao Senegal, mas que não querem que suas famílias saibam sobre suas dificuldades.

CN: É evidente que você fez escolhas de montagem. Você poderia não incluir esses momentos em que a presença da câmera é questionada, mas você optou por mostrar essas dificuldades.

Ndèye Soukeynatou Diop: Sim. Eu queria mostrar todas as dificuldades que encontrei. É por isso que incluí todas as imperfeições: os planos instáveis, a câmera que se vira, essa dificuldade de encontrar meu lugar na praia com os pescadores que não queriam ser filmados. Esses são obstáculos que quis mostrar. É uma escolha! Eu poderia ter mostrado apenas os aspectos positivos, mas quis revelar os desafios que enfrentei ao tentar filmar minha própria comunidade.