Por Daniele Agapito

Se em 1968, nos Estados Unidos, mulheres se unem para atirar sutiãs, bobes de cabelo e edições da Playboy na “lata de lixo da liberdade”, em frente ao tradicional concurso Miss America, em Igarapé-Miri, no interior do Pará, uma loba solitária cria seu próprio ato de libertação. Após finalmente escapar de um longo casamento marcado por abusos emocionais, Dona Onete pega uma calça jeans apertada, corta, transforma em shortinho e vai dançar carimbó. É o jeito brasileiro de dizer “já deu”.

Agora, em 2025, ela encontra uma grande aliada para falar da sua luta por liberdade de expressão: Mini Kerti, diretora de sua cinebiografia e fã. As duas chegam para uma entrevista exclusiva ao Cine Ninja na Cinemateca Brasileira, horas antes da exibição do filme “Dona Onete – Meu Coração Neste Pedacinho Aqui”, durante a 49ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo.

A cantora aparece em uma cadeira de rodas, brinca com a situação, dá gargalhadas, com a energia de uma criança recém-chegada ao mundo — isso aos 90 anos. Começamos a conversa falando da minha viagem recente ao Amazonas, até chegar ao canto das lavadeiras.

Daniele Agapito (Cine Ninja): O canto das lavadeiras é uma referência pra você?

Dona Onete: Essas lavadeiras ficam ali entre o Maranhão e o Pará. Elas cantam, batem tambor de crioula, sabe? Quando você vai se aproximando de Belém, já vai entrando o carimbó. A cultura vai se misturando com outra cultura. Indo pro lado de Manaus também tem lavadeira na beira do rio. A melhor coisa é lavar roupa cantando, né? Eu, pelo menos, até pra lavar um prato, canto uma música.

DA: Por que surge essa vontade de cantar quando as mulheres se reúnem?

DO: Lá em Cametá ainda tem muita lavadeira que canta. Acho que é um jeito de botar pra fora muita coisa. Às vezes a mulher tá oprimida, cansada… ela canta pra aliviar o peso. Eu fiz muito isso. Se eu cantava lavando um prato, meu marido tinha ciúme, dizia que eu tava cantando pra outro homem. Era o peso do que eu era e do que eu me tornei, tá entendendo? Só quando eu entrava na sala de aula é que eu me sentia eu: a Dona “Net”, a professora. Dentro de casa, acho que eu era outra coisa.

Mini Kerti: Ela cantava pros alunos. Foi assim que começou. Estudava cultura amazônica, era professora do primário e do ginásio, e fazia composições com o que via, com o que aprendia, com o que pesquisava da cultura local. O açaizeiro, o homem que sobe no açaí com a peconha… ela transformava isso em música. E assim fez mais de 500 composições.

DA: Aproveitando a deixa, Mini, como foi seu encontro com Dona Onete?

MK: Eu já ouvia as músicas dela, porque amo música brasileira. Me apaixonei pela letra, pelo ritmo, pela alegria. Conheci Geraldinho Magalhães, empresário dela, e falei: “Geraldinho, eu preciso contar a história dessa mulher. Preciso conhecer ela.” Ele disse: “Eu te levo, mas tu tem que conquistar ela.” E fui devagarinho, conquistando. A Jose, Josivana Rodrigues, neta dela, ajudou muito. Ela tem um mestrado sobre a avó. Todo o documentário se baseou nesse trabalho.

DO: Eu colocava minhas coisas nas músicas, mas não era tristeza de todo, era sobre o extravasar. Outro dia fiz uma música, não tá no teu filme, Mini. Chama “Amor Reciclado”.

DA: O que diz essa música?

DO: Eu digo assim: “O amor reciclado, sofrido, enganado, jogado, tem tantos por aí procurando um coração desocupado… Aí eu aviso: cuidado! Se por um acaso esse amor bater na porta do teu coração, deixa ele entrar, mas presta atenção: não entra de cabeça nessa relação! Teu coração já sofreu, pra ninguém é segredo… gato escaldado de água fria tem medo.”


Além dos traumas da relação passada, de um homem que a chamava de burra, que a fazia se sentir desinteressante, indesejada, que controlava suas roupas e que a impedia até de levar adiante os estudos, Dona Onete cresceu com o medo real de ser levada pelo boto-cor-de-rosa. Por conta dessas histórias amazônidas antigas, passadas de boca em boca, a tia dela proibia até de chegar perto do rio. Mais tarde, já vestindo seu shortinho, totalmente livre das ordens da família, do marido e da fofoca do bairro, ela vai pra beira do rio cantar pros botos, e eles se aproximam, em bando, para ouvir. As imagens estão no filme para ninguém dizer que é mentira.

Começamos a falar dos encantados da região amazônica (que inclui também o curupira, a matinta-pereira, a Iara, o capelobo…), da floresta, da cidade e do hibridismo cultural do Norte.

DO: Os encantados são nossas crendices. No Pará tem muito, porque a gente foi se misturando com tudo: negro, índio, branco, mascate que vinha de longe, afiava faca, amolava tesoura… tudo isso aconteceu lá. Foi pro Amazonas, pro Acre… Cametá, onde eu nasci, já foi capital do Pará. Francês morou lá, inglês morou lá. É muita história pra cantar. Mas a gente ficava quietinho, não conseguia trazer. Eu tive que sair do Brasil, cantar lá fora, pra depois me ouvirem aqui dentro. Nossa língua é do caboclo, não é o português certinho. A gente canta do nosso jeito. Muita gente não entende. A gente fala égua pra tudo! Égua de ti!

MN: Sobre a floresta… É que no Pará a floresta tá do lado. Belém é dentro da floresta. Não é como aqui, que você sai da cidade e vai pra floresta. Belém é a floresta.


Por fim, falamos sobre Dona Onete “estourar” depois dos 60 e tantos. Ela ri: “Vou explodir pra onde? Nem sabia o que era isso de estourar.”

Mini já se despede para apresentar a sessão. Dona Onete conta alguns spoilers sobre o filme e sobre o renascimento após o ciclo de abusos psicológicos, que não vou contar aqui para que vejam o filme na íntegra. No fim da conversa, cruzamos também com Emicida, que aparece no documentário. É com as palavras dele, ditas ali mesmo pro Cine Ninja, na Cinemateca, que encerro esta matéria:

“Não existe linha entre Dona Onete e a natureza. A gente, às vezes, de um jeito equivocado, se convence que o ser humano tá acima da natureza, no lugar de dominar ela, de categorizar ela. Quando, na verdade, mano, o ser humano vive no máximo 100, 120 anos… O que é 100 anos pra um baobá que vive mil? O ser humano não é porra nenhuma. Só que um ser humano como ela (Dona Onete) é imenso. Ela é como uma samaumeira gigante, e a gente tá aqui, debaixo da sombra dela.”