Para onde nos levará o descaminho da guerra?
Estamos diante da maior mobilização militar na Europa após o fim da Segunda Guerra Mundial.
Quando vi aquela fila gigante de veículos no rumo de saída de Kiev, capital da Ucrânia, fiquei me perguntando para onde iriam. Num primeiro momento, provavelmente, para as vizinhas Moldávia e Polônia. Mas quantos refugiados poderiam receber? Em que condições? Por quanto tempo?
E o que dizer dos mortos? Na maioria jovens, não importa o lado. Vidas inteiras perdidas, famílias dilaceradas, amores precocemente rompidos. Pode ser que haja vencedores entre os promotores do conflito, mas ambas as nações sairão amputadas e a humanidade será a maior perdedora.
A invasão da Ucrânia pela Rússia não chega a ser uma novidade total. Há sete anos, manifestações maciças de cidadãos da Criméia de ascendência russa levaram à sua ocupação e posterior anexação pela Rússia. A diferença é de escala: estamos diante da maior mobilização militar na Europa após o fim da Segunda Guerra Mundial. Por enquanto, se trata de uma guerra localizada e, como ocorre em região distante, enseja a falsa impressão de que o conflito, embora lamentável, não terá maiores consequências para nós que vivemos na América do Sul.
A questão de fundo é que o presidente Vladimir Putin, há duas décadas no poder, avalia que chegou o momento histórico de reagir à perda de influência da Rússia desde a queda do Muro de Berlim e a derrocada da URSS, a antiga União Soviética. Vê os Estados Unidos enfraquecidos pela polarização política interna e pelas dificuldades crescentes para intervir militarmente, como na retirada atabalhoada do Afeganistão, ocupado pelo Talebã.
Lógicas imperiais
Putin tem razão em contestar a estratégia da Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte) em incorporar países vizinhos da Rússia, colocando-a ao alcance da sua mira. A manifestação de interesse do governo ucraniano em aceitar o convite para ingressar na Otan foi uma espécie de estopim do conflito, dando à Rússia o pretexto para alegar que invade a Ucrânia para garantir a sua própria soberania.
E não é um mero pretexto, pois a Otan vem aumentando contingentes e instalando mísseis em países do leste europeu, que vão além das demandas de defesa e configuram estratégias ofensivas. Isso ajuda a explicar a preocupação russa com a pretendida incorporação da Ucrânia à Otan.
Porém, invadir e bombardear unilateralmente a Ucrânia, matando e destruindo, é uma aberração irracional e violenta. Um suposto remédio muito pior do que a suposta doença. A “razão” russa carrega uma ameaça implícita à Estônia, Letônia e Lituânia, que já foram incorporadas à Otan , assim como à Finlândia e à Suécia, que também estão convidadas a integrá-la. No meio dessa crise já instalada, um porta-voz do governo russo fez ameaças explícitas de retaliações, inclusive militares, contra a Finlândia e a Suécia, que responderam reafirmando a intenção de levar adiante a sua adesão à Otan.
É evidente a vantagem militar convencional da Rússia em mover o peso do seu exército sobre os países vizinhos, deixando para o Ocidente o ônus de aprofundar a guerra. Mas parece que Putin não percebe ou não se importa com a fragilidade implícita na sua incapacidade política de adensar relações de cooperação econômica, social e cultural com os seus vizinhos, fora da lógica imperial. O uso recorrente da força é, também, expressão de fraqueza.
Ainda que a Rússia não avance suas tropas para além da Ucrânia, os impactos políticos, econômicos e humanitários dessa invasão irão muito além da zona de conflito. A guerra cibernética já está intensa e deve atingir países e sistemas de comunicação no mundo todo. Alertas foram emitidos para que todos reforcem os seus sistemas de segurança digital, mas é difícil avaliar a extensão dos danos que afetariam os serviços em geral.
Por outro lado, foram anunciadas duras sanções econômicas contra a Rússia, que devem suscitar retaliações, impondo uma dinâmica de confronto nas relações comerciais e nos fluxos de capitais entre os países. Essas medidas estão provocando quebras no fornecimento de produtos e altas nos preços das commodities, alimentando a inflação. É improvável que essas sanções, por si só, contenham o Putin, mas já complicam a recuperação econômica no pós pandemia.
Outra dimensão do conflito é a guerra de informações. A Rússia acionou o seu aparato de propaganda para fazer crer que combate um governo “nazista” e que o conflito teria começado com a queda do governo anterior, pró Rússia. Porém, não fala da anexação precedente da Criméia a não há como abstrair o fato de que as suas tropas se encontram em território ucraniano e que a ofensiva rumo a Kiev, a capital, encontrou resistência muito maior do que Putin esperava. Com isso, será obrigado a ampliar o ataque, os danos, o sofrimento e as baixas de ambos os lados. Pelo menos no Ocidente, ele está isolado, perdeu a guerra de versões e ficou com a pecha de agressor.
A China vem adotando uma posição cautelosa diante do conflito, mas de apoio à Rússia – de acordo com a aliança estratégica entre os dois países, anunciada durante a visita de Putin a Pequim, em fevereiro, na abertura dos Jogos de Inverno. O presidente Xi Jinping condenou as sanções econômicas e a ameaça representada pela expansão da Otan que, recentemente, decidiu alocar submarinos nucleares na Austrália, aumentando a tensão no Pacífico Sul. Ainda não sabemos se a aliança com a Rússia e a guerra na Europa poderão levar a China a invadir Taiwan, em vez de optar pela via política, que levou à incorporação pacífica de Macau e de Hong-Kong.
Deterioração da vida
Até ontem, já se falava em mais de dez mil soldados e civis mortos. A União Europeia contabilizava o ingresso de 680 mil refugiados vindos da Ucrânia. Protestos contra a guerra estão sendo reprimidos em São Petersburgo e em outras cidades russas, cuja população já sente o impacto das sanções econômicas e tenta se proteger da desvalorização brusca do rublo. A extensão da guerra vai deteriorar ainda mais as condições de vida.
A eventual permanência do clima de guerra tenderá a reaquecer a corrida armamentista e a indústria bélica, desviando para esse fim recursos essenciais para a superação da pandemia e o combate à miséria e ao aquecimento global. Essa inversão de prioridades ocorre num momento crítico para a vida na Terra e para a própria sobrevivência humana.
Além dos impactos violentos e generalizados provocados pelas mudanças climáticas, o mundo vive uma exaustão sem precedentes dos recursos naturais, em geral, e da água, em especial. A desertificação avança e é cada vez mais difícil e custosa a alimentação para os mais pobres. A guerra só pode agravar a já dramática situação.
Não podemos ignorar que, em 1945, quando terminou a última grande guerra, a população mundial era de 2,3 bilhões de pessoas. 77 anos depois, somos 7,8 bilhões! Se os custos humanos, materiais e civilizatórios daquela guerra foram gigantescos, imaginem o que significará uma eventual expansão do atual estado de guerra.
Não é que a humanidade, genericamente, tenha enlouquecido. A grande questão é que há os “donos da guerra”, os dirigentes que reforçam os seus podres poderes nesse clima, os que lucram com a morte dos outros e com a destruição do meio ambiente, além dos que se deixam manipular, por oportunismo, ignorância ou imposição, por esses jogos genocidas de poder.
Apocalipse Now
Com tantas inspirações, vale a pena dar uma relida no Livro do Apocalipse, parte final das Sagradas Escrituras. Os elementos formadores do Armagedom já vinham povoando esses últimos anos de pandemia, com profusão das fake news, desastres naturais e crises humanitárias. Faltava a … guerra!
A boa notícia é que o Apocalipse não tem nada de apocalíptico e significa revelação, ao contrário do que muitos cristãos imaginam, ou uma “descoberta de grande conhecimento”. Para além do Armagedom, que é o osso a ser roído agora, o que nos espera é um reino de mil anos de felicidade. Sendo assim, o melhor que podemos fazer é lutar contra essa guerra!
Sem prejuízo das agendas emergenciais relativas à reversão das desigualdades sociais e das mudanças climáticas, urge, também, restabelecer a agenda da paz. Não chegaremos ao reino da felicidade sem promovermos um cessar fogo imediato e a desmobilização das tropas. Deveriam ser retomadas as negociações, no âmbito da ONU, para o desarmamento global, levando em conta os pontos de tensão que levaram à crise atual e a reconversão progressiva dos efetivos e dos orçamentos militares.
Já passou da hora de superarmos a cultura política que divide o mundo em blocos antagônicos de países. Que os povos disputem entre si a primazia nos esportes, na economia e no desenvolvimento científico e tecnológico, mas que se eximam, definitivamente, de ameaçar e de atacar outros povos militarmente. Precisamos discutir a reconversão da Otan e da aliança entre a China e a Rússia – fundadas na cumplicidade diante da agressão a outros povos – em um sistema global de defesa civil, que nos permita encarar os duros desafios do século livres da síndrome suicida da guerra.