“Presidente, vossa excelência tem sido por 30 anos um profeta no combate à criminalidade…”. Assim falou André Mendonça, que deixou a Advocacia-Geral da União (AGU) para assumir o Ministério da Justiça, em substituição a Sérgio Moro, demitido por Jair Bolsonaro. Mendonça se define como evangélico e espera ser escolhido pelo presidente para a próxima vaga disponível no Supremo Tribunal Federal (STF). Bolsonaro diz que pretende indicar alguém que seja “terrivelmente evangélico”.

Eu não sou evangélico, mas fui culturalmente forjado no mundo cristão e estranho muito essa associação entre o “evangelho” e o adjetivo “terrível”. O fundamento principal do evangelho, até onde eu sei, é o amor a Deus e ao próximo, não dissociáveis entre si. E o dicionário ensina que “terrível é o que causa e inspira terror; que ocasiona consequências nefastas; funesto”. Se alguém for evangélico ao ponto de causar terror e consequências nefastas para o próximo, terá deixado, há muito, de ser evangélico. É um paradoxo. Concordo com o Reinaldo de Azevedo quando diz que “o terrivelmente evangélico é terrivelmente anticristão”.

Talvez seja por isso que o Mendonça adotou um novo profeta, mesmo tendo a criminalidade crescido continuamente nos últimos 30 anos, enquanto esse “profeta” paradoxal fortalecia as milícias que assassinam pessoas, como Marielle Franco, e espalham terror pelas comunidades do Rio de Janeiro. E é fato que essa profecia do terror vem se concretizando tragicamente no mandato do profeta-presidente. Só as mortes evitáveis da epidemia do coronavírus, potencializadas pela ação ou omissão presidenciais, chegarão às dezenas de milhares. Ou mais.

Quanto mais a crise aprofunda-se, aumentando exponencialmente a rejeição da maioria da população ao seu governo, Bolsonaro mais recorre a pastores e templos evangélicos para promover narrativas falsas e tentar conter a erosão na sua sustentação popular. Mas o que importa aqui não é o profeta em si, muito menos o seu discípulo ministerial, cujas posições já tive a oportunidade de qualificar em escritos anteriores. O que mais importa agora é compreender os processos e mecanismos que fazem com que milhões de evangélicos tenham se identificado com Bolsonaro ou que assim se mantêm, que eu acredito amarem verdadeiramente a Deus e com os quais eu gostaria de compartilhar projetos políticos para o futuro que possam resgatar o lado generoso e diverso do Brasil.

Dada a minha santa ignorância sobre o universo das igrejas evangélicas brasileiras, recorri à sabedoria da Camila Mantovani, idealizadora  da frente evangélica pela legalização do aborto, estudante de teologia e integrante da Igreja Batista do Caminho. Como eu iniciei a conversa com ela associando o bolsonarismo às igrejas pentecostais, ela foi logo esclarecendo:

“A primeira coisa é compreender que não apenas os evangélicos não são um bloco religioso homogêneo, como nem os ‘pentecostais’. Existem muitas igrejas e figuras pentecostais que adotaram posturas contrárias a Bolsonaro desde o período eleitoral e mais ainda agora. No cenário das diversas denominações, a maior resistência nas urnas veio justo das pentecostais nordestinas, e isso é muito significativo. A outra coisa é compreender que a fidelidade religiosa de Bolsonaro é com o setor que mais lhe garanta capital político para jogar o jogo”.

Camila também ressaltou que o recorte implícito na minha abordagem, entre evangélicos tradicionais e pentecostais, é simplista, se não preconceituoso. “Pestecostais e neopentecostais são os que fazem mais barulho, mas não são necessariamente as mentes perversas que ditam as regras do jogo. O setor protestante histórico (majoritamente branco e elitizado) está na cabeça de todas as operações fundamentalistas que, por vezes, são executadas por algumas igrejas pentecostais de maior renome. Ao longo do tempo, se consolidou um estigma sobre o bloco pentecostal, que não só serviu para proteger dos confrontos os setores mais nefastos, como também serviu para reforçar o racismo, a misoginia e o ódio de classe, já que a cara do pentecostalismo brasileiro é negra, pobre e mulher”, analisa.

Sobre a contradição de fundo entre o amor e a violência, a Camila diz: “acredito que a pergunta deva ser como a cultura  cristã (e não especificamente pentecostal) assimila essa contradição entre o mais elementar e fundamental do cristianismo, que é o amor, e toda a necropolitica pregada e implementada por Bolsonaro. Os pentecostais, apesar de serem os que fazem maior barulho, não são necessariamente as cabeças pensantes que criam as regras do jogo fundamentalista. As igrejas históricas, majoritariamente brancas e elitistas, carregam consigo boa parte da responsabilidade política pela semeadura, o cuidado e a colheita desse cristofascismo instaurado hoje no Brasil. E aqui eu apelo para que, sem isentar de responsabilidade, não reforcemos, sobre o movimento pentecostal, os estigmas, demonizando esse setor que é tão plural e majoritariamente constituído por trabalhadores brasileiros pobres, em sua gigante maioria mulheres negras, já tão violentadas e estigmatizadas. O fascismo encontrou tanta ressonância  em determinada parcela do cristianismo porque viu nele uma lente de leitura bíblica já adestrada pelo capitalismo\ patriarcado\branquitude\colonialismo. Criar a figura de um Deus Homem-Branco é doutrinar corações e mentes a crerem que Homens-Brancos são Deus e, portanto, têm sua autoridade assegurada e livre de questionamentos. Esse amor a essa figura de Deus é suscetível a todo tipo de sugestão violenta, porque é o amor servo, submisso e disposto a todo tipo de guerra a qualquer inimigo que ameace a esse objeto de amor: Homens-Deus-Brancos. Isso é parte, sim, da doutrina de muitas igrejas. Nossa tarefa agora é descolonizar os olhares sobre a bíblia e sobre Deus. É mostrar um Deus que decidiu não estar acima de todos, mas optou por estar ENTRE NÓS”.

Camila aponta, ainda, que a verdadeira linha de corte é estabelecida por pastores e igrejas que colocam objetivos econômicos acima dos princípios cristãos e que, por isso mesmo, afinam a sua postura com a do Bolsonaro diante da crise: “Há uma crise para todos os grandes pastores líderes que encaram a igreja com essa visão de mercado. As arrecadações online, por transferência e depósitos, não fazem tanto sucesso quanto as arrecadações tradicionalmente feitas nos templos, durante os cultos. Isso de fato está balançando alguns impérios.E esse é um dos principais motivos para determinados líderes optarem por ignorar recomendações da OMS adotadas em vários países, e fazerem coro com as barbaridades negacionistas ditas pelo presidente”.

A variável evangélica é muito relevante para compreendermos a natureza da crise em que nos metemos e para indicar caminhos para a sua superação. Se realmente acreditamos na força transformadora que existe na promoção respeitosa da nossa diversidade como povo, a postura em relação aos milhões de irmãos brasileiros e evangélicos, só pode ser a do acolhimento.

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