O governador do Distrito Federal editou um decreto obrigando o uso de máscaras a partir de 30/04. Eu sei que ele, apesar da sua ambiguidade gritante, adotou essa medida considerando o agravamento da epidemia em Brasília e as recomendações da OMS, a Organização Mundial de Saúde. Estou consciente de que se trata de um dos cuidados mais importantes para reduzir o contágio de pessoas pelo coronavírus.

Como eu sempre tive grande incômodo com o uso de adornos ou penduricalhos de qualquer natureza, vinha preferindo melecar o rosto e as narinas com álcool gel para eventuais saídas de casa. Sendo eu do grupo de risco e diante do prazo dado pelo decreto, amigas muito queridas encomendaram para mim um lote de máscaras fabricado por uma profissional de saúde, que passou a se dedicar também a esse ofício diante da falta do produto e dos preços abusivos no mercado. Fiquei até emocionado quando recebi a encomenda: máscaras de duplo tecido, laváveis, acessíveis no preço, adequadas no tamanho e, ainda por cima, lindas! Cores e estampas variadas, inclusive um modelito xadrezinho, tudo em cima para poderem combinar com qualquer roupa. Assim, passei a usá-las e lavá-las quando saio e volto para casa.

Antes disso, só me lembro de ter usado máscara no tempo em que eu gostava das festas de carnaval. Ela tinha, então, um outro sentido, de diversão e de sedução, num jogo meio arriscado em que se pode tanto arrumar um novo amor, quanto ser induzido a erro ou, até, se meter numa grande confusão. De qualquer modo, a máscara é uma espécie de biombo, ou escudo, ou segunda identidade.

Acho que foi em 2003 que eu estive em Nova Délhi para uma conferência sobre mudança climática. Chegamos zonzos de cansaço no aeroporto e, de lá, fomos direto para o hotel e para a cama. Logo vimos que estávamos em outro planeta, mas ainda não havíamos percebido nada sobre que planeta era aquele. Na manhã seguinte, enquanto eu esperava os demais no saguão do hotel após o café da manhã, topei com um grupo numeroso de turistas japoneses que se preparava para sair à rua, todos requintadamente mascarados e botem máscaras nisso, pois mais pareciam escafandros, ou astronautas.

Fiquei indignado! Para mim, aquilo soava como um tremendo desrespeito aos indianos. Perguntei-me porque aquelas pessoas não teriam, então, escolhido outro país para visitarem, já que temiam de forma tão flagrante o contato direto com a Índia. Fiquei achando que o governo indiano deveria proibir aquilo: quem quisesse conhecer in loco os mistérios e as belezas do país teria que se dispor a encará-lo frontalmente.

Mas essa valentia toda se desfez, abruptamente, assim que saímos do hotel. Nova Délhi cheirava ovo podre! Numa longa avenida congestionada, não se via nada além do décimo carro à frente. Um dos colegas virou-se e me disse: “acho que vamos precisar de máscaras!” Nem havia o que responder a ele: a minha ingenuidade estava derrotada!

Por isso se diz que a população das grandes metrópoles chinesas não teve grandes problemas com máscaras quando eclodiu a epidemia do novo coronavírus, pois já estava muito acostumada com seu uso e suprimento, por conta dos níveis absurdos de poluição do ar. A pandemia derrubou a atividade industrial e limpou o ar das cidades, mas as pessoas continuaram usando máscaras por um novo motivo.

Eu espero que os latino-americanos se adaptem bem ao uso de máscaras, para que o vírus seja contido ou até que se tenha uma vacina. Fico muito feliz vendo cenas de crianças brincando com máscaras, com alegre e radiante criatividade. Melhor assim! Que se acostumem logo cedo, pois o apetrecho será muito mais importante daqui para a frente do que foi antes.

Tudo bem, vamos lá, temos que derrotar essa epidemia e evitar o que for possível em perdas. Tenho um belo estoque de máscaras e posso até me insinuar por aí. Mas confesso que o meu coração fica aflito de imaginar um mundo sempre mascarado, com bilhões de pequenos e furtivos biombos que impedem ou exigem licença para se curtir um bom sorriso e em que a tradicional frontalidade do olho no olho parece ficar pela metade. Estou motivado, sim, para sobreviver à epidemia, mas imploro aos cientistas para nos livrarem deste e de outros vírus: não vou conseguir me adaptar a um mundo que fique o tempo todo povoado por inimigos letais invisíveis e pessoas amadas mascaradas.

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