Foto: Enchente em Manaus (AM), em 2016 | Alberto Cézar Araújo / Amazônia Real

A tentativa frustrada de golpe da extrema direita esquentou o debate sobre o papel das Forças Armadas (FAs) no regime democrático. Quem se opõe ao golpe entende que elas foram lenientes ao tolerar acampamentos golpistas em frente aos quartéis por meses, enquanto os golpistas dizem que elas foram covardes ao não impedirem, à força, a posse de Lula.

O alto grau de politização e de ideologização entre policiais e militares promovido pelo governo passado deixou sequelas. O suposto envolvimento de ex-ministros militares na estratégia golpista, como Braga Neto e Augusto Heleno, multiplica dúvidas sobre a isenção política e o compromisso democrático das FAs. Milhares de militares que foram cooptados para cargos civis foram exonerados e, os que estão na ativa, voltam, ressentidos, para as suas funções de origem.

Quarta-feira da semana passada (18), o general Tomás Miguel Miné Ribeiro Paiva, então comandante militar do Sudeste, fez um enfático discurso em defesa da isenção política e do profissionalismo nas FAs, durante uma cerimônia no Quartel-General Integrado, em São Paulo. Na sexta-feira, o presidente reuniu-se com os comandantes militares para definir uma agenda positiva na política de defesa, em um clima de “página virada”.

Quebra de confiança

No sábado, porém, para surpresa geral, Lula exonerou o comandante do Exército, general Julio Cesar de Arruda, que esteve na reunião da véspera, quando não foi discutida a tentativa de golpe. Foi acordado que as investigações pertinentes seguiriam a cargo da Polícia Federal, subordinada ao STF, e que os eventuais culpados seriam punidos, sejam civis ou militares.

A divergência de Arruda com Lula começou por causa da nomeação, pelo primeiro, do tenente-coronel Mauro César Barbosa Cid, ex-ajudante de ordens de Bolsonaro, para comandar um batalhão de elite do Exército, em Goiânia, a 200 km da capital. Cid foi um dos assessores mais próximos do ex-presidente, participou da difusão de fake news e de ofensas contra Lula, o que levou à sua inclusão entre os investigados pelo STF e à descoberta de que operava, dentro do Palácio do Planalto, uma imensa rachadinha alimentada por cartões corporativos. A informação é de que Arruda teria resistido à exonerar o militar bolsonarista.

A gota d’água, provavelmente, foi a divulgação pela imprensa de mais detalhes das conversas realizadas, na noite do dia 8 de janeiro, em Brasília, entre Arruda, outros militares, ministros do governo Lula, o recém-nomeado interventor da Segurança Pública do DF, Ricardo Cappeli, e o então comandante da Polícia Militar do DF, Fábio Augusto Vieira.

Os ministros da Defesa, da Justiça e do Gabinete da Casa Civil, além de Capelli e Vieira, reuniram-se com Arruda para viabilizar a retirada do acampamento golpista instalado, há meses, em frente ao Quartel-General do Exército e para prender seus participantes, após a depredação das sedes dos Três Poderes. Arruda não só não concordou com a ação como chegou a ameaçar impedi-la com o uso de suas tropas.O clima esquentou, com bate-boca entre Arruda e o ministro da Justiça, Flávio Dino. Depois que os ânimos se acalmaram, o combinado foi que o acampamento seria desmontado e as prisões ocorreriam na manhã seguinte. Depois disso tudo, Lula exigiu exoneração de Arruda e o substituiu por Ribeiro Paiva.

A profissionalização das FAs requer a formação e a valorização dos seus quadros, sem qualquer discriminação de gênero, de raça, de religião ou de opinião política. Mas ela não pode ser alcançada protegendo ou promovendo quem atua contra a democracia.

Formação com ciência

Nas tratativas preparatórias para a reunião entre Lula e os comandantes militares, membros das forças sinalizaram aos interlocutores do governo que, em nome de uma convivência positiva nos próximos anos, esperavam ver respeitados seus usos, costumes e tradições. Entre eles, teria sido mencionada a necessidade de não interferência do governo nos currículos das escolas militares. Nada consta sobre o assunto no programa de governo de Lula.

Para além da discussão específica sobre os currículos, experiências dolorosas dos anos recentes mostram um quadro grave de ignorância e de negação à ciência, do comando à tropa. Foi o caso do combate à pandemia do novo coronavírus, em que o Ministério da Defesa mergulhou na distribuição de cloroquina, inclusive entre indígenas, quando já havia evidências científicas da sua ineficácia para esse fim.

Outro exemplo gritante é o do negacionismo climático. O pensamento dominante nas FAs continua tratando a ameaça das mudanças climáticas como se fossem uma fake ambientalista, quando já não existem dúvidas científicas sobre o aquecimento global, tendo como causa principal a excessiva emissão de metano, dióxido de carbono e outros gases na atmosfera. A ignorância deliberada sobre o tema torna ridículos estudos “estratégicos” recentes, como o “Projeto de Nação: Brasil 2035”, formulado por três importantes ongs militares.

Emergência climática

Não estou falando de saber especulativo e nem de estudos pontuais, mas de acúmulo científico ao longo do tempo. Não é preciso que o governo civil imponha conteúdos semelhantes aos currículos militares. Os próprios dirigentes militares devem fazê-lo, da forma mais apropriada aos seus usos e costumes. Nesses casos, a negação da verdade não é questão de opção ideológica, mas cobra o seu preço em vidas, muitas vidas, inclusive de militares e familiares.

Também não se trata de projeções científicas, mas de realidades factuais acachapantes. O aumento da temperatura potencializa a violência das tempestades, com maior volume de água em menor tempo. E também favorece o alongamento das estiagens, com impactos crescentes sobre a agricultura, o abastecimento das cidades e a geração de energia. O aumento do nível do oceano já afeta ilhas e regiões costeiras com ressacas violentas e erosão.

A crise climática já afeta a economia de todos os países, embora as vulnerabilidades sejam diferenciadas; intensifica fluxos migratórios internos e externos; contribui para o aumento da sede, da fome, da disseminação de doenças e da violência. O Brasil precisa da capacidade humana e operacional e da capilaridade estrutural das FAs para proteger o povo, o território e a economia dos impactos das mudanças climáticas.

Diversos países dispõem de instituições militares públicas e privadas dedicadas às implicações estratégicas das mudanças climáticas, assim como há foros de debates internacionais. Segundo seus usos, costumes e tradições, as FAs precisam recuperar o tempo perdido e incorporar, de forma orgânica, a emergência do clima à sua visão estratégica, antes que seja tarde demais.

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