Semana passada, a Câmara dos Deputados aprovou, de repente, por 252 votos contra 163, um projeto de lei (PL) que fixa pena de até quatro anos de reclusão para quem cometer crimes “resultantes de discriminação em razão da condição de pessoa politicamente exposta, ou de pessoa que esteja respondendo a investigação preliminar, termo circunstanciado, inquérito ou a qualquer outro procedimento investigatório de infração penal, civil ou administrativa, ou de pessoa que figure na posição de parte ré de processo judicial em curso”. A autora da proposta é a deputada Dani Cunha (União-RJ), filha do ex-presidente da Câmara Eduardo Cunha, que teve o mandato cassado pela própria Casa.

Cerca de cem mil pessoas são consideradas politicamente expostas (PPEs). Como a proteção prevista no PL estende-se a parentes, e até a assessores, pode-se imaginar que essa categoria chegue a um milhão de pessoas. E também se aplica a outras mais, investigadas ou processadas, que ainda não tenham sido definitivamente condenadas.

A natureza corporativa do PL bagunçou a correlação entre esquerda e direita, misturando forças supostamente antagônicas entre favoráveis e contrários. Vale a pena consultar o cômputo de como votaram as bancadas:

PL: 37 Sim x 44 Não
PT: 43 Sim x 11 Não
PSD: 23 Sim x 11 Não
União Brasil: 35 Sim x 16 Não
Republicanos: 27 Sim x 7 Não
MDB: 24 Sim x 10 Não
PP: 23 Sim x 13 Não
PDT: 10 Sim x 4 Não
Podemos: 8 Sim x 3 Não
PSOL: 0 Sim x 10 Não
PCdoB: 0 Sim x 7 Não
Novo: 0 Sim x 3 Não
Cidadania: 0 Sim x 2 Não
Rede: 0 Sim x 1 Não
Patriotas: 1 Sim x 2 Não
PSC: 3 Sim x 0 Não
Solidariedade: 1 Sim x 2 Não
PSB: 5 Sim x 5 Não
Avante: 3 Sim x 3 Não
PSDB: 6 Sim x 6 Não
PV: 3 Sim x 3 Não

O projeto foi apresentado neste ano, não tramitou em comissões técnicas mas foi pautado em plenário, de sopetão, pelo presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), que articulou a aprovação do regime de urgência e do mérito, na mesma sessão, em poucos minutos e sem qualquer discussão.

“Foda-se!”

Se o projeto se tornar lei e você, por exemplo, chamar de corrupto um político já condenado na Justiça por corrupção, sem que a sentença tenha transitado em julgado, ele poderá te processar para te enquadrar nesse novo crime. Mas se ele te ofender, você teria de correr atrás do prejuízo com base na legislação comum, com baixíssimas chances de sucesso, sobretudo se ele for detentor de mandato protegido pela imunidade parlamentar. Sendo que você paga o salário dele e ele não paga o seu.

Eduardo Cunha e Dani Cunha | Reprodução Instagram

Tanto o PL quanto a forma fulminante e nebulosa da sua aprovação são exemplares do tipo de representação política que escolhemos. Se ele virar lei, seremos desiguais perante a lei. Você me dirá que nunca fomos tão iguais e eu te direi que, com essa, seremos muito menos ainda.

Notem que a linha de corte da votação não tem a ver com direita versus esquerda. O PT é o partido que contribuiu com o maior número de votos para a aprovação dessa excrescência e apenas a Rede, o Novo e o PSOL a rejeitaram unanimemente. Venceu uma postura corporativista plutocrática.

Abstinência

Talvez a aprovação do PL tenha sido apenas um desdobramento da crise de abstinência que contamina o Congresso, viciado em “orçamento secreto”, instrumento resultante da relação aviltante entre o presidente Arthur Lira e o ex-presidente Jair Bolsonaro, que cristalizou um bloco de cerca de 300 deputados, disposto a aprovar qualquer coisa mediante a liberação de bilhões em emendas parlamentares.

O ex-presidente Jair Bolsonaro e o presidente da Câmara, Arthur Lira | Reprodução Twitter

A experiência do “orçamento secreto” comprometeu parte importante da capacidade de investimento do país com projetos e obras paroquiais que, com frequência, dão espaço para desvios, como ocorreu na compra de kits de robótica com recursos do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb), superfaturada e ofertada a prefeituras de Alagoas.

Com a eleição de Lula e a vedação pelo STF das emendas secretas, esperava-se a redução dos níveis de apropriação indevida do orçamento e a recuperação da capacidade de investimento estratégico do país. Mas o Congresso entrou em transe e se recusa a votar qualquer medida de interesse público sem levar alguma vantagem. A própria bancada governista parece entender que, agora, seria a sua vez de pulverizar o orçamento em favor de interesses próprios.

A apropriação da capacidade de investimento do país pelo Congresso corrompe o sistema presidencialista, escolhido pelo povo em plebiscito, em 1993. Em seu lugar, Lira e Centrão tentam instituir um parlamentarismo canalha, em que o presidente, e não o Congresso, é quem responde politicamente perante o povo pela ingovernabilidade e pela virtual inapetência estratégica do país.