Verra, a maior empresa do mundo que certifica projetos de carbono para mitigar a mudança climática global, está em pane. O jornal britânico The Guardian, junto com outros veículos de mídia, realizou uma investigação independente que constatou que 90% dos créditos validados pela empresa, relativos a projetos que afirmam reduzir emissões de carbono florestal, não têm “adicionalidade”, ou seja, não ajudam a melhorar a situação do clima.

A suspeita não envolve os créditos certificados pela Verra e gerados por projetos que reduzem emissões no setor energético, ou promovem o sequestro de carbono através da restauração florestal. A empresa suspendeu a certificação de novos projetos que alegam reduzir desmatamentos e iniciou um processo de revisão dos que já haviam sido aprovados antes.

Essa revisão pôs em polvorosa empresas de consultoria que dão apoio técnico para elaborar e monitorar projetos de carbono. Elas têm atuado com grande desenvoltura na disputa por áreas florestadas, envolvendo os seus titulares, inclusive povos indígenas e comunidades tradicionais, em contratos de exclusivida e de longo prazo, que asseguram a elas direitos sobre parte dos créditos gerados, para vendê-los a empresas que queiram compensar as suas emissões de carbono.

Má fé

O modus operandi de algumas consultorias tem grande semelhança com o de frentes predatórias que exploram minérios, madeiras e outros recursos naturais das florestas públicas. Por exemplo, oferecem dinheiro adiantado às comunidades carentes, a ser devolvido depois, quando da venda dos créditos. Assim, reproduzem a lógica perversa do aviamento, que gera relações de dependência. O dinheiro premia a assinatura de contratos, que lhes reservam 30% dos créditos gerados, mesmo na ausência de qualquer estudo ou projeto técnico prévio, a serem elaborados depois.

Há contratos com comunidades que sequer dispõem de protocolos de consulta ou de planos de gestão dos seus territórios. Há cláusulas que garantem às empresas os mesmos 30% sobre a venda de outros produtos da biodiversidade local. São contratos lesivos, tanto para o clima quanto para as comunidades, com falhas técnicas e relações injustas. A sua proliferação contamina o nascente mercado de carbono no país e concorre, de forma predatória, com quem atua seriamente nele.

Foto: Rafael Dias Rios de Souza/ISA

O Ministério Público Federal (MPF) está preocupado com essa onda de contratos lesivos e deve tomar providências. Espera-se que a sua 6ª Câmara, que promove a defesa de direitos dos povos indígenas e das comunidades tradicionais, defina parâmetros e limites para esses contratos através de nota técnica. Se não forem revistos, poderão ser judicializados.

Além da atuação do MPF, é desejável que o governo federal estabeleça uma política para os projetos florestais que evite a degradação do mercado de carbono no país e preserve as florestas federais e as populações que vivem nelas. Como a própria ameaça climática, que é global, a regulamentação do mercado de carbono tem caráter internacional e avança lentamente nas COPs, as conferências das partes no âmbito da ONU. Essas regras vão definir critérios de adicionalidade para que créditos de carbono possam ser emitidos e comercializados.

Outros países, que assumiram há mais tempo metas de redução, já dispõem de legislação própria, que fixa objetivos e incentivos para que as empresas reduzam emissões. Elas podem recorrer ao mercado de créditos para reduzirem custos e prazos ao cumprirem as suas metas. É para este fim – de mitigar as mudanças climáticas – que existe o mercado de carbono. Projetos sem adicionalidade atrasam esse objetivo e não merecem créditos.

Foto: Rafael Dias Rios de Souza/ISA

No Congresso, tramitam vários projetos de lei que pretendem regulamentar o mercado de carbono. Só que são propostas descoladas das metas brasileiras de redução de emissões, que não definem um regime interno de objetivos para o setor privado, e não garantem adicionalidade climática. Além disso, a Câmara acaba de aprovar uma medida provisória, ainda sujeita à revisão no Senado, que permite que empresas madeireiras que exploram concessões de florestas públicas possam desenvolver projetos de carbono nessas áreas, o que tampouco contribui para mitigar a situação do clima. O Congresso precisa compreender que não adianta criar uma burla legal interna numa questão de âmbito mundial e que interesses de consultores e certificadores não podem ignorar as exigências da emergência climática.

Atuação dos Estados

Em novembro de 2021, houve um avanço importante em uma COP realizada em Glasgow, Escócia. Embora parcial, foi suficiente para aquecer o mercado de carbono e ensejou, no Brasil, iniciativas promissoras mas, também, esse surto mais recente de contratos lesivos e desprovidos de projetos. Havia, então, um presidente negacionista e um governo oportunista nas negociações internacionais, que se interessava apenas no eventual acesso de grandes proprietários rurais aos recursos do mercado.

Com a chegada de Joe Biden à presidência, os EUA retornaram ao Acordo de Paris e, com o Reino Unido e a Noruega, lançaram um fundo denominado LEAF, para financiar projetos “jurisdicionais” – nacionais ou subnacionais – de carbono florestal. Diante da omissão federal, governos de estados da Amazônia ocuparam esse vazio e passaram a negociar diretamente com os doadores e a elaborar projetos próprios. Alguns estados, apesar do desmatamento em alta, já acessam recursos de pré-investimento para formular projetos. Mas a onda de contratos lesivos atropela esse processo e subtrai estoques significativos da governabilidade pelos estados.

Os critérios do LEAF são bem mais razoáveis do que os projetos pontuais e não adicionais do mercado voluntário, ao abordar a redução de emissões em escala de estado e condicionar a emissão futura de créditos de carbono a reduções efetivas e comprovadas. Mas os projetos em construção pelos estados têm contabilizado os estoques de carbono das terras federais, sem terem legitimidade para geri-los. O protagonismo dos estados é mais do que desejável, mas os seus projetos devem ser compatíveis entre si e respeitar o papel imprescindível da União na gestão das florestas federais.

Governo Lula

Com a eleição do Lula e a volta da Marina Silva ao Ministério do Meio Ambiente, será retomado o Plano de Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia (PPCDAM) – principal fator de emissões do Brasil. Uma versão atualizada dele já está disponível para consulta pública. A questão climática está colocada como prioridade pelo presidente, que compareceu à COP realizada em Sharm el-Sheikh, no Egito, antes mesmo da sua posse.

Porém, o novo governo deparou-se com o cenário confuso do mercado de carbono. Para aproveitar as oportunidades desse setor, ele terá que estabelecer normas que definam a titularidade sobre os estoques florestais, os critérios que garantam a adicionalidade para projetos e que saneiem o mercado, rejeitando contratos lesivos e projetos não adicionais.

O impacto da crise climática já afeta todas as regiões do país, com secas e enchentes mais agudas, provocando mortes e destruição. Perdas agrícolas, menor geração de energia hídrica, crises no abastecimento de água nas cidades serão crescentes. Se não formos capazes de aproveitar as oportunidades, só nos restará o amargo sabor da tragédia.

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