O direito e sua magia: a grilagem revestida de legalidade
A Funai mais uma vez fechará seus olhos para as grilagens que ocorrem em relação as terras indígenas, bastando lembrar que temos pelo menos 246 terras indígenas ainda pendente de homologação.
Estamos vivendo o tempo em que os debates jurídicos ganharam espaços no cotidiano das pessoas, ultrapassando os espaços das faculdades e tribunais. Nas redes sociais o fenômeno é igualmente notado, “rábulas virtuais” acionam dispositivos legais para justificar posicionamentos políticos. Essa “conduta legalista” pode ser observada no movimento indígena, não com a finalidade política, mas sim, num esforço coletivo de entender os direitos e garantias fundamentais dos povos originários e como isso pode ser utilizado para defender os interesses indígenas.
No dia 22 de abril de 2020, fomos surpreendidos pela publicação da Instrução Normativa n. 09/2020, da Fundação Nacional do Índio – Funai, que disciplina o requerimento, análise e emissão da “Declaração de Reconhecimento de limites em relação a imóveis privados”. Esta normativa revogou a Instrução Normativa n. 03, datada de 20 de abril de 2012, promovendo significativa mudança administrativa e atingindo os direitos e interesses dos povos indígenas do Brasil.
A citada normativa foi comemorada por representantes do setor ruralista. Tendo em vista os tempos em que vivemos, não é preciso muito esforço para entender, como este expediente jurídico, gestado no âmbito de um governo declaradamente anti-indígena, que teve como bandeira de campanha a “não demarcação de terras indígenas e quilombolas” e posteriormente, aparelhou o órgão indigenista aos interesses do agronegócio.
O parágrafo primeiro do art. 1º, da Instrução Normativa n. 09, vaticina que a “Declaração de Reconhecimento de Limites” se destina a fornecer aos proprietários ou possuidores privados a certificação de que os limites do seu imóvel respeitam os limites das terras indígenas homologadas, reservas indígenas e terras dominiais indígenas plenamente regularizadas. Passando os olhos de forma rápida, a primeira impressão é que a normativa é constitucional e vem a atender os interesses dos povos indígenas. Mas não se engane, pois, o direito tem essa capacidade de sedução, fornecendo-nos lentes capazes de nos fazer enxergar apenas aquilo que lhe convém. Essa é a magia do direito. É assim que o público se transforma em privado, como num passe de mágica, nasce a propriedade, o espaço coletivo é cercado e recebe um dono para chamar-lhe de seu.
O Estatuto do Índio, instituído pela lei n. 6.001, de 19 de dezembro de 1973, em seu art. 17, arrola três categorias de terras indígenas, sendo: a) as terras ocupadas ou habitadas pelos silvícolas; b) as áreas reservadas; e c) as terras de domínio das comunidades indígenas ou de silvícolas. Ocorre que o Estado brasileiro está em débito com os povos indígenas, pois o art. 65, do citado estatuto de 73, já previa que o “Poder Executivo fará, no prazo de cinco anos, a demarcação das terras indígenas, ainda não demarcadas”. Ou seja, até 1978 todas as terras indígenas deveriam ser demarcadas. Sobreveio a Constituição de 1988 e novamente impôs o mesmo prazo vaticinando no art. 67 da ADCT, que a “A União concluirá a demarcação das terras indígenas no prazo de cinco anos a partir da promulgação da Constituição”. Assim, mesmo a Constituição de 1988 reconhecendo o direito originário dos povos indígenas aos seus territórios tradicionais, no artigo 231, e reimpondo prazo de cinco anos para a demarcação e homologação de todas as terras indígenas. Ainda assim, várias comunidades hoje estão fora de seus territórios tradicionais aguardando o reconhecimento jurídico-formal de sua terra.
Na prática, a Funai mais uma vez fechará seus olhos para as grilagens que ocorrem em relação as terras indígenas, bastando lembrar que temos pelo menos 246 terras indígenas ainda pendente de homologação. Os invasores de TI poderão solicitar a DRL à Funai e, munidos desse documento, requerer junto ao Incra, por meio de cadastro autodeclaratório, a legalização dessas áreas invadidas. Neste contexto, nos preocupa os povos indígenas isolados. Atualmente existem 114 registros de povos isolados considerados pela Funai. Destes, apenas 28 são confirmados de acordo com a metodologia do órgão, em 17 Terras Indígenas e 3 áreas com Restrição de Uso. O restante, 86 registros, estão em fase de qualificação. Os registros ainda não confirmados, e principalmente aqueles localizados fora de áreas protegidas, configuram assim um grande passivo de estudos e pesquisas do órgão indigenista oficial (Funai) e um entrave para a efetivação da política de proteção aos isolados no Brasil. Esse passivo no reconhecimento da plena existência desses povos, principalmente em áreas não demarcadas, leva ao risco de genocídio desses povos uma vez que seus territórios ficam à mercê de invasores e empreendimentos que causam tanto violência direta quanto risco de contágio por doenças infecciosas.
Assim, na medida que a Funai passa a considerar passível de emissão de Declaração de Reconhecimento de Limites (documento que atesta que a propriedade não incide em Terra Indígena) toda posse (sem escritura) ou propriedade que não incida apenas sobre terra indígena homologada, reserva indígena, terras indígenas dominiais, passa a liberar para a compra, venda e ocupação todas as terras em estudo, as delimitadas pela Funai, as terras declaradas pelo ministério da justiça, além das áreas sob portarias de restrição de uso. Além de permitir a emissão da DRL em áreas interditadas para estudo sobre a presença de isolados.
Esse mesmo documento emitido pela Funai servirá de fundamento jurídico para grileiros buscarem na justiça a legitimação de sua posse em detrimento dos direitos indígenas. Assim é o direito burguês, ele encontra no Estado a estrutura necessária para servir o capital. São práticas, rotinas e condutas administrativas que se aperfeiçoam no Estado e sua magia se opera no mundo jurídico, fornecendo a grilagem o véu da legalidade.