Esse artigo foi publicado pelo Jornal O Globo em 2 de dezembro. Por motivo de espaço, o texto teve que ser reduzido para quase a metade. Eis o artigo na íntegra.

A eleição de Lula significa a retomada do caminho democrático e esse caminho, que já começa a ser desbravado, passa pela retomada do desenvolvimento cultural do país. A retomada do cinema e do audiovisual brasileiro se dará no contexto da retomada das políticas culturais e da reconstrução do Ministério da Cultura.

A experiência dos últimos quatro anos mostrou como um governo antidemocrático e a inexistência do MinC é capaz de paralisar a política do cinema. Digo isso porque a Ancine não foi extinta, mas ficou travada, sem recursos, sem iniciativas e incapaz de dar sua contribuição para o desenvolvimento do cinema e do audiovisual. O fluxo de financiamento do audiovisual foi interrompido, a regulação abandonada, a cota de tela deixou de ser implementada pela primeira vez desde sua criação por Getulio Vargas.

O governo que agora termina deixou o mercado audiovisual brasileiro sem regras, sem estímulo ao produto brasileiro, e deixou um mercado desregulamentado, onde impera a lei da selva, submetendo esse bilionário mercado à lei dos mais fortes.

Vimos igualmente os mecanismos de apoio e incentivo ao audiovisual serem questionados e minados pelo governo brasileiro, justamente aquele que deveria zelar, defender e implementar esses mecanismos e essas políticas construídas ao longo de décadas e de gerações de cineastas e produtores. Falei sobre isso no Festival de Brasília, espaço de expressão da consciência histórica do cinema brasileiro, que no decorrer das suas muitas edições constituiu uma massa crítica essencial para o cinema e para a consolidação do Brasil como nação.

Foi no Festival de Brasília, criado entre outros por Paulo Emilio Salles Gomes, que vimos sempre ebulir a afirmação do direito do Brasil produzir suas imagens, sua soberania e seu destino.

Retrocedemos nos últimos 4 anos à República Velha, antes dos anos 1930, quando o mercado cinematográfico brasileiro era terra de ninguém, entregue aos interesses dos grandes estúdios de cinema estrangeiros, sem qualquer proteção legal ou econômica ao produtor nacional. Quando a concepção hegemônica era a de que o Brasil é uma grande fazenda, um país eminentemente rural e sem pretensões na modernidade. Época em que o mercado de cinema no Brasil era conformado para ser mero mercado consumidor, fornecedor não de filmes brasileiros, mas de espectadores, e os governos e leis eram pautados pelos lobbies do cinema americano.

É fundamental retomar o tripé da política audiovisual brasileira, com o fortalecimento do Conselho Superior do Cinema, que foi esvaziado. Vivemos uma situação absurda, semelhante a da república velha, quando vemos que o Conselho Superior entregue para representação de empresas, ou de lobistas que representam não a cadeia produtiva e artística nacional, mas, paradoxalmente, os que competem localmente com o produto brasileiro.

O audiovisual e o cinema em particular, além da sua importância como fato cultural e político, capaz de contribuir para o fortalecimento da nação e para o desenvolvimento cultural do povo brasileiro, é um mercado estratégico, gerador de dividendos e emprego, por isso pergunto: como o governo brasileiro foi capaz de entregar a construção dessa política para empresas estrangeiras?

O governo deve dialogar com todos, mas não pode se submeter aos que disputam o nosso mercado com o Brasil.

A TV pública deve ser uma TV independente, pública e republicana, voltada para a sociedade com uma programação de qualidade, que não se mede apenas por audiência, mas por sua sensibilidade e inteligência, pela força estética e de linguagem e capacidade informativa… e que seja um instrumento de acesso ao conteúdo audiovisual brasileiro e regional. A EBC precisa voltar a ser parte de uma política pública de cultura brasileira.

É preciso retomar o diálogo com o mundo, as linhas de apoio para integrar a produção brasileira com outros países, seja na Europa, na Ásia, nos Estados Unidos e na América Latina e com os povos africanos de língua portuguesa. Tudo isso foi interrompido dentro de uma lógica de que o Brasil não precisava dialogar culturalmente com ninguém e que as quinquilharias do livre mercado cultural nos bastariam. É fundamental avançarmos na direção de um mercado comum para os filmes e conteúdos latino americanos.

E finalmente, quando fui Secretario de Cultura em SP criamos a Spcine, uma iniciativa bem sucedida e bem avaliada que vem sendo inspiração assim como foi a Riofilme para iniciativas de política públicas em outras regiões do Brasil. Temos que voltar a falar com governadores e prefeitos para que a política audiovisual volte a ter um olhar a partir destas regiões e para todo o território brasileiro, retomando o programa de co-investimento que deu tão certo.

Existe cinema e audiovisual de qualidade sendo feito hoje em todas as 5 regiões. Um filme acreano venceu o ultimo premio de melhor filme em Gramado e um filme feito na periferia de Belo Horizonte vai representar o Brasil no Oscar. Existe cinema de qualidade em todos os territórios, em todas as populações, incluindo os indígenas, os negros, e a juventude periférica.

O audiovisual é um poderoso instrumento de desenvolvimento territorial e social e de fortalecimento da nossa rica diversidade cultural. E precisa ser pensado como um componente indispensável de educação e cidadania, para que todo brasileiro e brasileira possa ter acesso aos repertórios essenciais para a vida democrática no século XXI.

O grupo de trabalho da transição está reunindo as informações para ajudar o presidente Lula na retomada de um Ministério da Cultura e para que o audiovisual seja percebido como a linguagem de uma nova época, de um novo tempo e de um novo ciclo de cidadania e desenvolvimento do Brasil e para que a democracia se instale e se consolide definitivamente nesse país.

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