Entrevista com Gustavo Conde, mestre em linguística pela Unicamp

Arte: Jojo Hissa & Fernando Carvall

Em um dos filmes mais importantes produzidos por Hollywood, na década de 1990, Malcolm X (Spike Lee, 1992), os atores Denzel Washington e Albert Hall interpretam a que talvez seja a cena mais significativa do filme: a que condensa a biografia do ativista, que marcaria a história política contemporânea. Nessa cena, o personagem Baines, interpretado por Hall, coloca em jogo a importância da ordem simbólica na sustentação de um sistema racista que distorce a percepção que o negro tem de si mesmo. Para trazer à tona a ideia, ele faz Malcolm ler a definição de negro que aparece no dicionário da prisão. No dicionário, “negro” aparece associado a conceitos como trevas, malvado, perverso e sujo, entre outras associações pejorativas. Malcolm percebe que existe um plano invisível, ou imaterial, no qual o racismo se manifesta de forma plenamente impune: no plano da construção de sentido. Um território pouco explorado, e por consequência, atravessado pela subjetividade. O militante intelectual, que logo se tornaria a conhecida figura política, inicia sua viagem de desconstrução do mundo branco, decodificando seu próprio ato de fala. Na época do lançamento do longa-metragem, a epifania chegou para todo ocidente: o racismo está no ato de fala. O cinema ajudou a popularizar a luta histórica do movimento negro, que teve Malcolm X como um dos seus expoentes mais proeminentes nas décadas de 1950 e 1960.

É logo por esses anos que surgem as primeiras críticas feministas para denunciar as marcas masculinas da língua espanhola. A linguagem é apresentada como “neutra” ao mesmo tempo que reúne referências sucessivas ao homem e nega às mulheres. Quando as feministas apontaram para “todos”, a fim de questionar onde as mulheres estavam, elas avançaram em direção a uma compreensão da linguagem como tecnologia de governança de gênero. Até a atualidade, a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) orienta a utilização de expressões inclusivas e a incorporar o feminino aos genéricos masculinos (falar “todos e todas”).

Nos dias de hoje, essa discussão vê-se revitalizada pela crítica queer e trans dos essencialismos. Aqui, nem uma marcação de gênero, nem duas – nem todas são suficientes para uma “linguagem inclusiva”. Tais usos alertam que a linguagem é finita e reducionista em suas marcações masculinas ou em sua dose de visibilidade feminina. O questionamento tenta trazer para a cena variações irredutíveis ao entendimento cisheterocentrado. Quando utilizamos o “todes” nos distanciamos de uma presunção do mundo dividido em “homens” e “mulheres”. Essa aposta política não foi compreendida por aqueles que a criticam como uma nova forma de invisibilidade das mulheres. Pelo contrário, não se trata de colocar a transvisibilidade antes das de mulheres cisgênero, e sim de assumir a impossibilidade de conter, pela linguagem, as múltiplas experiências de gênero.

Para entender um pouco melhor estas e outras questões, confira entrevista com Gustavo Conde, mestre em Linguística pela Unicamp.

Um dos intelectuais mais importantes do século XX, Antonio Gramsci, desenvolveu como ninguém antes o conceito de “hegemonia cultural”, que revela a importância do plano simbólico para a consolidação de um poder dominante dentro de um sistema social. Até que ponto você vê a língua fortalecendo uma hegemonia de poder em um setor social?

A língua é a tecnologia mais avançada já produzida pelas sociedades humanas. Quando se fala em tecnologia no sentido corrente – redes sociais, algoritmo, nanotecnologia, engenharia, astrofísica, botânica – é preciso ter em mente que uma tecnologia muito mais complexa precede todas estas: a língua humana. Ela possibilita a existência de todos esses campos do conhecimento e, a rigor, é ela quem apresenta o potencial mais devastador – ou restaurador – para mexer no “sistema”, seja ele social, tecnológico ou político. Se o algoritmo colapsar, a vida continua. Se a língua colapsar – a Babel bíblica – a história cessa e os sujeitos se estilhaçam. Em suma, falar da língua com a própria língua é o grande desafio.

Respondendo objetivamente a sua pergunta, a língua não apenas fortalece hegemonias de poder, ela cria essas hegemonias. Um exemplo comum: achar que o estudo formal é a referência máxima no campo do conhecimento e na dimensão intelectual não corresponde à “verdade” mas a um discurso. Este discurso, no entanto, é tratado como verdade e, na dança dos sentidos e das argumentações ad hoc, tem-se a consolidação de uma hegemonia, a “hegemonia do estudo formal”. Não é possível afirmar que o estudo formal seja o grau máximo da performance cognitiva, ou que ele seja superior a outros tipos de manifestação do intelecto humano. As tradições de oralidade presentes na cultura dos povos indígenas são mananciais extraordinários de conhecimento e percepção de mundo. A rigor, poder-se-ia questionar, expandindo a semântica da palavra “formal”: afinal, o que é ser “formal”?

Essa é a engrenagem linguística básica de toda e qualquer disputa por hegemonia social: mobiliza-se uma série de pressupostos, verdadeiros ou não, e defende-se um tipo de prática simbólica-técnica e seus adeptos, numa quase-repetição do que ocorre na difusão das religiões, com diferenças de procedimento quase invisíveis de tão sutis, se contempladas à lupa teórica dos estudos contemporâneos da linguagem. Alguns podem questionar: mas não se trata de “argumentação”? A resposta não é tão simples. Há um conjunto de fatores que “pressionam” e “controlam” o sentido, como a imprensa, os governos, as instituições e, hoje, o algoritmo e as big techs – que instauraram um novo problema para os estudos linguísticos que é a massificação da produção de sentido via interação digital. 

Em Racismo e Linguagem, Virginia Zavala e Michele Back expõem as relações existentes entre linguagem e racismo, algo que já era questionado pelos movimentos antirracistas liderados por Malcolm X, os Black Panters e outros mais. Existem pontos de encontro entre aqueles que buscam uma “neutralização” e a sua “desracialização”?

Neutralização é o que busca a hegemonia branca heteronormativa. O sentido não pode ser neutro porque a sociedade não é neutra. O sistema empurra essa ilusão da neutralidade para sua própria perpetuação. “Desracializar”, a meu ver, é um outro processo, mas pode ser lido de maneira ambígua. De um lado, trata-se, justamente, de tirar as marcas de racismo presentes na língua. De outro, de “apagar” as marcas semântico-gramaticais de racismo. A literatura antirracista parece tratar este verbo majoritariamente na primeira acepção. Eis aí mais uma disputa de sentido que não pode ser ignorada.

Eu diria – para escapar dessa questão específica e ao mesmo tempo tentar respondê-la – que a língua social ainda guarda marcas profundas de racismo, e que talvez esse seja o maior desafio técnico e ético do nosso tempo: É preciso re-formatar a linguagem para que ela não pressione a perpetuação do racismo, do machismo e da transfobia.

Isso implica em mexer, de fato, na questão do gênero gramatical e nas expressões arraigadas, presentes em redações de jornal que destacam um entrevistado, por exemplo, com o sintagma “pesquisador negro”. Por que destacar “pesquisador negro” se não destaco “pesquisador branco”? Nesse sentido, as pautas identitárias são uma resposta espontânea da saturação racializada da atividade linguageira. Muitos intelectuais torcem o nariz para elas sem sequer tentar entender as razões de seu surgimento. Sentem-se desautorizados. E a questão é exatamente esta: eles perderam a autoridade para tratar deste tema, justamente porque estão radicalmente imersos no estudo formal – o que lhes tirou a percepção concreta da realidade social que, ademais, acelerou-se de maneira vertiginosa nos últimos dez anos.

Dentro da linguística se estipula que a linguagem é algo como um “produto de um inconsciente coletivo”, que tem um corpo mutante, difícil de regrar. Nesse sentido, todo movimento que pretenda intervir no ato da fala pode chegar a parecer uma frustrada tentativa de “exorcizar” a língua. Porém, cada vez mais vemos que os Estados modernos garantem instituições para resguardar as pessoas de serem discriminadas e injuriadas, que combatem o sexismo ou a discriminação por cor de pele ou gênero. Você acha que a língua pode ter tido mudanças, que algumas sentenças perderam força, algumas palavras viram seu sentido transmutado a partir dessas ações institucionais?

A língua tem seu aspecto selvagem, “indomesticável” como diria Lacan. É exatamente por isso que fomos obrigados ao longo da história a tentar domesticá-la com relativo fracasso – uma vez que a padronização de certas práticas é condição sine qua non para a atividade social. Você não controla a língua, você controla o sentido, e controlar o sentido significa mexer no regime de ocorrência das palavras. Palavras marcadas podem ser banidas, assim como neologismos e novas expressões podem ser adotadas. Esse é o curso natural do avanço civilizatório, que deu um salto violento no século XX, não por acaso, o século de surgimento da linguística moderna – e da consequente organização mais acelerada das ciências humanas e dos campos epistemológicos.

Não é à toa a catástrofe social e linguística que se abateu no Brasil nesses últimos anos. Há um descompasso nítido entre aquilo que foi banido de nossas práticas linguageiras e sociais e sua não aceitação por determinados setores da sociedade. Bolsonaro e sua trupe ainda vivem na ditadura militar racista dos anos 1970. Eles não aceitam que o mundo mudou, não aceitam a democracia (deturpam o sentido de democracia de maneira crassa). Mudanças sempre são traumáticas para a espécie humana, mas é justamente a assombrosa capacidade de adaptação e aperfeiçoamento da espécie que caracteriza sua incidência hegemônica no planeta (falemos também de hegemonia entre as espécies?).

Em tempo e mais uma vez – para responder diretamente à excelente questão: as práticas linguísticas seguirão sendo moldadas de acordo com as necessidades sociais de turno. Aliás, é bom que se diga: sempre foi assim. Desde sempre, setores sociais hegemônicos disseram o que poderia e o que não poderia ser dito – e todo mundo aceitou. A única diferença, agora, é que setores não hegemônicos (negros, mulheres, comunidades LGBTQI+) estão replicando essas formas de controle.

Do ponto de vista acadêmico, que inconvenientes pode provocar o avanço da linguagem inclusiva em uma sociedade como o Brasil?

Inconveniente nenhum. A linguagem inclusiva é uma realidade irreversível. A academia terá de entendê-la, absorvê-la e aperfeiçoá-la (quando não, “deturpá-la”, mas isso seria outro debate). A língua e sua prática linguageira correlata moldam, em conjunto, a realidade social que a fundamenta e cerca. Em outras palavras, a língua cria a realidade. Não é, de forma alguma, extravagante dizer isso. Trata-se de uma máxima teórica amplamente aceita por pesquisadores do campo.

A hipótese Sapir-Whorf, que inspirou o filme A chegada, lida diretamente com esse processo de criação de realidade pelas línguas humanas. Nesse sentido, a linguagem, inclusive, tende a produzir uma sociedade e um conjunto de práticas inclusivas – e democráticas. O dilema é similar àquele falso dilema do neoliberalismo, com relação à distribuição de renda: esperar o bolo crescer para, depois, dividir. O mundo já entendeu que não é assim que funciona. É preciso fazer crescer o bolo e ir dividindo ao mesmo tempo, por razões técnicas e éticas. Traduzindo, essas são práticas sociais que devem ser trabalhadas em primeiro lugar para que a linguagem se torne depois, espontaneamente, mais inclusiva. São práticas sociais somadas a práticas de modelação da linguagem, juntas, que irão produzir algum tipo de avanço no que diz respeito à inclusão social e combate à desigualdade. Há uma formulação muito auspiciosa dentro desta espiral de composição mais democrática da sociedade, via intervenções no plano simbólico: a língua passou a fazer parte do processo. Agora, ela é protagonista, geradora de políticas públicas – e não apenas o suporte fragilizado e vulnerável ao domínio do poder retórico hegemônico instalado em parte considerável de setores acadêmicos. A formulação de um novo paradigma foi para as ruas, e isso é muito bom.

Alguns linguistas acreditam que já não tem ponto de retorno e que a linguagem inclusiva irá se impor. Qual sua visão sobre o assunto?

Esta questão está, em parte, contemplada na resposta anterior. Eu diria ainda: eu sou um destes linguistas. Há um prazer, um gozo, em repovoar as próprias práticas linguageiras. É maravilhoso deixar de ser machista. É um processo poderoso combater o racismo estrutural que lhe habita o pensamento. Quem combate e vence o próprio racismo passa a ser capaz de realizar qualquer desafio cognitivo e intelectual. Não é, portanto, uma certeza no limiar da lamentação oriunda de nossos fantasmas estruturais do passado, entender que a linguagem inclusiva irá prevalecer. Trata-se de um processo que nos torna mais fortes enquanto sociedade e enquanto sujeitos. Se a tarefa for a perpetuação da espécie – e uma perpetuação que nos signifique como seres gregários e simbióticos e não parasitas virais – estamos no caminho certo.

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