“FAMÍLIA. Filho da Puta. Puta que o Pariu. Filho de uma égua. DEUS. Cacete. Foder. Fodido. PÁTRIA. Putaria. Porra. Merda. LIVRE MERCADO. Puta. Bosta. Estrume. Caralho. BRASIL”.

Essa é apenas a forma que embala o conteúdo – muito mais abjeto que qualquer palavrão usado pelo presidente Jair Bolsonaro e seus ministros – no vídeo divulgado da reunião ministerial de 22 de abril de 2020.

O vídeo é o filme de um Brasil doente, uma espécie de “História da Vergonha” que está sendo escrita, filmada, registrada em tempo real.

A decisão do ministro Celso de Mello, decano do Supremo Tribunal Federal (STF), de abrir o sigilo do vídeo traz algo, ao mesmo tempo já visto e jamais visto.

O  que é dito neste vídeo também é muito mais grave que as alegadas interferências do presidente na Polícia Federal (PF), denúncia feita pelo ex-ministro da Justiça e ex-herói bolsonarista, Sérgio Moro. Ao atirar em Bolsonaro, Moro acertou no governo todo.

O que vemos no vídeo é o modus operandi do governo, apresentado em suas entranhas e sem deixar margem para dúvidas ou interpretações.

Cães de Aluguel

Tudo o que já sabíamos, sim! Mas também tudo o que precisamos saber, de forma escancarada e didática, uma pedagogia obscena de “como funciona”, como se decide, como se opera o rebaixamento da democracia que passa a funcionar sob um comando com viés autoritário, autocentrado e clientelista.

O vídeo parece um roteiro de Quentin Tarantino para o filme Cães de Aluguel. Uma reunião que mostra o acerto de contas, brutal, alucinatório, insano, de uma gang arregimentada para proteger o chefe do clã, Jair Bolsonaro e sua família, os amigos, os parceiros, os aliados, custe o que custar.

O Capitão e os Capatazes

Bolsonaro, com seu comportamento paranoico e narcísico, rivaliza com seus próprios ministros e as falas exigem comportamentos mais agressivos de defesa do “chefe” e do seu governo: “Tira a cabeça da toca, porra! Não é ficar dentro da toca o tempo todo não!”.  Mensagem direta para o próprio Sérgio Moro, entocado e ausente da cena política até romper com Bolsonaro.

Bolsonaro não age e nem fala como Chefe de Estado, o mandatário que recebe poderes para praticar atos jurídicos ou administrar interesses dos brasileiros, fala como capitão para subordinados em um quartel, tendo como horizonte seu próprio mandato, sua sobrevivência política e dos seus.

Os ministros são tratados como “recrutas” que pagam missões: “Se a missão for absurda, o ministro fala “ó, tchau, tô fora”, tá certo? Ou vai e fica puto, mas vai”. A lógica é a do mando.

No vídeo ou fora dele, o que vemos é um Bolsonaro em campanha permanente para a eleição de 2022.

Nenhum outro tema o mobiliza a não ser a luta política e sua autopreservação: “Então é isso que eu apelo a vocês, pô. Essa preocupação. Acordem para a política e se exponham, afinal de contas o governo é um só. E se eu cair, cai todo mundo.”

Sem Planos para a Saúde

A pandemia da Covid-19 e as mortes em série no Brasil não o interessam, o que se fala sobre o o assunto é para desqualificar as medidas tomadas por governadores e prefeitos de enfrentamento ao vírus.

Bolsonaro reforça, a cada fala sua, as narrativas negacionistas, o discurso anticientífico e tudo que negue a tragicidade dos dados da pandemia no Brasil, a trágica cifra de 21 mil mortos em 23/05, com a curva ascendente geométrica.

Não há empatia, não há urgência, não se demanda estratégias no campo da saúde. Toda a argumentação de Bolsonaro é um cálculo de disputa narrativa para sustentar sua aposta em uma “gripezinha”, abraçando o negacionismo, as fake news, e as teorias conspiratórias.

Um erro monumental que as milhares de mortes, covas coletivas, enterros sem velórios, pacientes entubados e os que morrem sem atendimento e sem leitos vêm reafirmar.

O vírus tem “Ideologia” acredita Bolsonaro

A letalidade do vírus, para Bolsonaro não é um fato que atinge bilhões em todo o planeta,  é uma “ideologia”, uma espécie de bioterrorismo Chinês, mas que no Brasil é direcionado por governadores e prefeitos contra ele! Nos grupos de whatsapp bolsonaristas, os negacionistas alimentam essa versão paranoide injetando fake news diárias e infectando o corpo social.

“O que esses caras fizeram com o vírus, esse bosta desse governador de São Paulo, esse estrume do Rio de Janeiro, entre outros, é exatamente isso. Aproveitaram o vírus, tá um bosta de um prefeito lá de Manaus agora, abrindo covas coletivas. Um bosta. Que quem não conhece a história dele, procure conhecer (…) a ideologia dele e o que ele prega. (…) Tá aproveitando agora, um clima desse, pra levar o terror no Brasil.”

O Isolamento Social é uma “Ditadura”

Contra “o terror” do vírus, Bolsonaro afirma que vai armar a população para que lute CONTRA o isolamento social, uma medida tomada em todos os países e a única que achata a curva de contaminações e diminui o ritmo das mortes.

“Armar o povo” contra a “ditadura” de governadores e prefeitos que querem “o povo dentro de casa” em uma inversão patética em que Bolsonaro se torna o defensor da “liberdade” dos que colocam em risco a saúde de todos.

“Um bosta de um prefeito faz um bosta de um decreto, algema, e deixa todo mundo dentro de casa. Se tivesse armado, ia pra rua. (…)  Por que que eu tô armando o povo? Porque eu não quero uma ditadura!”

Justificar as Mortes com Comorbidades

Outra narrativa que Bolsonaro impõe  que seja adotada é a de que só estão morrendo da Covid-19 pessoas com comorbidades.  E dá uma ordem: “Então vamos alertar a quem de direito, ao respectivo ministério, pode botar CODJV- 19, mas bota também tinha fibrose (…) Tinha um montão de coisa lá, pra exatamente não levar o medo à população.”

Em nenhum momento se exige ou se demanda soluções para o enfrentamento da pandemia da Covid-19 ou estratégias. Para Bolsonaro tem que se deixar a população, a “manada” se contaminar ou morrer: não há nada a fazer.

Delírio de onipotência

A reunião ministerial explicita a forma de operar bolsonarista, a de construir narrativas para uma realidade paralela e alucinatória, atravessada por bravatas de prisões, punições, demissões, ameaças judiciais, e por certo delírio de onipotência

O grupo bolsonarista se pensa acima das leis, acima do Congresso, da Justiça, do Supremo Tribunal Federal, acima de prefeitos e governadores, acima do seu próprio Ministério da Saúde, acima de fatos e acima da sociedade.

Ouvimos do ministro Weintraub a explicitação do desprezo pelas instituições ao pedir para “colocar os vagabundos todos na cadeia, começando pelo STF”. As bravatas dão o tom dos ministros que mimetizam o comportamento caricatural do “chefe”

Todos os poderes são ameaçados e desqualificados em nome de uma forma de governo que se resume a “uma canetada do presidente”. Uma canetada com “parecer”, pois, nas palavras do Ministro do Turismo, Ricardo Salles “Sem parecer também não tem caneta, porque dar uma canetada sem parecer é cana.” Uma máquina de pareceres é montada para fazer passar a “boiada” bolsonarista.

O Cheiro do Povo

Bolsonaro quando fala dos brasileiros fala do seu “povo” que o presidente quer armar para defende-lo, que esbraveja nas aglomerações em frente ao Palácio do Planalto pedindo ditadura.

A base zumbi que Bolsonaro afaga dizendo que quer “sentir o cheiro do povo” nas ruas. O povo que sai em carreadas ou aglomerações para afrontar as recomendações da OMS de isolamento social, o povo que agride agentes de saúde e propaga a cura milagrosa por cloroquina.

A Tragédia é uma Oportunidade

Os ministros de Bolsonaro também vêem oportunidades políticas na tragédia do corona vírus.  Ricardo Salles fala em “aproveitar a oportunidade” de uma a imprensa ocupada com a Covid para passar a “boiada”, todas as leis que reduzem a proteção ao meio ambiente e contemplam grileiros, desmatadores, madeireiros.

A ministra dos Direitos Humanos, Damares, propõe usar os direitos humanos para “prender governadores e prefeitos” que defendem o isolamento social. E afirma que “a maior violação de direitos humanos da história do Brasil nos últimos trinta anos está acontecendo neste momento”.

Que violações? Damares fala de idoso e mulheres “algemados” e pastores pagando multa por abrir templos, os que afrontam o isolamento social e colocam em risco a população.

Um Complô Global

A ministra também funciona no modo delirante do Presidente da República. Conta que viajou para investigar denúncias de “contaminação criminosa em Roraima e Amazônia, de propósito, em índios, pra dizimar aldeias e povos inteiro pra colocar nas costas do presidente Bolsonaro.” Certamente são os mesmos que botaram fogo na Amazônia para incriminar Bolsonaro. O governo alimenta sua fábrica de  “fatos”.

Arma na Cabeça: A Economia ou a Vida?

A reunião ministerial foi convocada para debater um Plano Pró-Brasil  ou um “Plano Marshall” bolsonarista para a economia, sob a coordenação do general Braga Netto, chefe da Casa Civil.

O Plano é detonado pelo ministro Paulo Guedes por ser parecido demais com o que Lula e Dilma propuseram com o PAC (Plano de Aceleração do Crescimento), o Estado intervindo para recuperar a economia e investindo recursos públicos em obras e infraestruura.

Guedes desqualifica a proposta e reafirma sua aposta no pacote de Reformas, privatizações, recursos para a iniciativa privada, a “saída” neoliberal para uma crise que coloca todo o sistema privatista em xeque e aponta para outros mundos e possibilidades.

Como em Cães de Alugueis veremos ainda as disputas fratricidas no clã entre militaristas nacionalistas e o extremismo liberal de Guedes que diz no meio da reunião que “tem que vender essa porra logo”, se referindo ao Banco do Brasil.

A privatização é o  “sonho secreto” do presidente do Banco do Brasil, Rubem Novaes, declarado ali. Até Bolsonaro reage e diz que “isso é para 2023”, ou seja, depois da sua reeleição. Esse é o sonho ameaçado de Bolsonaro pelo vírus. Essa é a revolução vírus! Uma derrota biopolítica para um governo que exerce o necropoder.

O Virus e o Social

O Brasil sofre com a crise na saúde, crise social, humanitária, econômica, crise política e de valores, que se prolongará na pós-pandemia se nada for feito.

A pandemia acirra as desigualdades já extremas no Brasil, com o sofrimento de milhões de brasileiros. Ao mesmo tempo estamos vendo emergir redes de solidariedade nas favelas, nas periferias, no campo cultural, entre os fazedores e batalhadores dos territórios, redes de artistas do mainstream e de empresários. Uma percepção de que não há saídas individuais.

O corona vírus derrubou o discurso do empreendedorismo sem lastro em políticas públicas, cai por terra a ideia de que somos empreendedores de nós mesmos.  Não sobrevivemos isolados, o cenário de crise e de urgências na pandemia expõe as fraturas. O vírus escancara a necessidade dos Estados, de bens comuns, nossa co-dependência e sobrevivência em rede.

Novos Sujeitos Políticos

A pandemia fez emergir novos sujeitos políticos, como os agentes de saúde, as enfermeiras e médicos, vimos ganhar visibilidade o trabalho de entregadores, de atendentes, de uberizados, de autônomos que se organizam e emergem como força política em busca de direitos.

Teremos que pensar na virtualização da vida e no trabalho remoto como novo campo de incertezas e vulnerabilidade, mas também como potência.

Parodiando Bolsonaro que assume que vai sim interferir “onde for preciso” para não “foder a minha família toda, de sacanagem, ou amigos meu”, porque não podemos também interferir onde for preciso, respeitando a democracia, para não sucumbirmos a um governo que nos leva para a morte real e como sociedade?

O vídeo revelado só reforça a convicção que a saída para o Brasil é a negação de todo esse ideário bolsonarista, paranóico-delirante, na sua forma obscena, porn, perversa, explícita. Um hiperindividualismo tóxico que fracassou. Esse governo é um dos seus efeitos colaterais. Está tudo ai explícito, nessa versão pornô-ministerial, pornô-presidencial, pra quem quiser ver.

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