Foto: Jorge Ferreira / Mídia NINJA

Ajudei a escrever um abaixo-assinado lançado na semana passada pelo Movimento Funk Nacional, que definiu o assassinato de nove jovens em Paraisópolis no último dia 1º como “crime contra a humanidade” e disse que o caso “renderia uma vaga no banco de réus do Tribunal Penal Internacional”. A partir de sua divulgação, numa audiência pública sobre o caso na Assembleia Legislativa de São Paulo, surgiram notícias de que o movimento levaria o caso às cortes internacionais. Claro que há um imenso trâmite entre a divulgação de um manifesto como esse e uma consequência jurídica externa. Mas seria legítimo levar os responsáveis pelo massacre a um banco de réus no qual sentaram perpetradores de genocídios em Ruanda e na antiga Iugoslávia? Seria politicamente viável apresentar nova denúncia poucas semanas depois de Jair Bolsonaro ter sido denunciado por sua negligência e retórica genocida em relação à Amazônia?

Não há um tratado internacional dedicado exclusivamente à noção de “Crime contra a humanidade”. Mas o conceito foi definido no Estatuto de Roma, a peça jurídica que, em 1998, fundou o Tribunal Penal Internacional. Essa corte, sediada em Haia, na Holanda, se dedica a investigar e responsabilizar criminalmente indivíduos ou organizações que ataquem populações civis de forma generalizada ou sistemática. No caso de Paraisópolis, temos as duas situações.

Nenhuma das pessoas mortas pela polícia durante o fluxo da DZ7 se envolveu em qualquer hostilidade contra agentes da lei, o que mostra que a ação foi generalizada, um ato de terror contra a população civil. E diversos vídeos evidenciam a característica sistemática da violência policial no local. Um deles, que a Secretaria de Segurança Pública diz ser de 19 de outubro, mostra um soldado na saída de uma viela, gargalhando enquanto distribui golpes de cassetete a esmo contra jovens de mãos ao alto. Entre as vítimas, há mulheres e até um rapaz de muletas. Ou seja, há provas de que, quase dois meses antes do massacre, a polícia já aterrorizava o público do fluxo. E tudo indica que as provas visuais disponíveis são só a ponta do iceberg.

Na definição do Estatuto de Roma, “crime contra a humanidade” é o “assassinato; extermínio; escravidão; deportação ou transferência forçada; aprisionamento ou privação de liberdade em violação às regras fundamentais das leis internacionais; tortura; estupro; escravidão sexual; prostituição; gravidez ou esterilização forçadas; perseguição contra qualquer grupo ou coletividade identificada a partir de critérios políticos, raciais, nacionais, étnicos, culturais, religiosos, de gênero ou outras bases identificáveis; desaparecimento forçado; apartheid; ou outros atos desumanos similares que intencionalmente causem grande sofrimento, sérias lesões ao corpo ou à saúde física ou mental” de populações civis. Numa prova de múltipla escolha, a política de segurança pública brasileira precisaria de uma opção “todas as anteriores”. Portanto, há legitimidade na demanda do movimento.

Além de expor nossos opressores, este tipo de denúncia permite estabelecer novas pontes para a troca de tecnologias de sobrevivência popular

Como temos uma elite brutal, forjada na escravidão e no genocídio, inapta ao diálogo e absolutamente refratária ao desenvolvimento coletivo da população, reforçar nossos laços internacionais é questão de sobrevivência. Não somos ingênuos a ponto de imaginar que as instituições liberais internacionais carreguem o estandarte da igualdade e do respeito ao povo preto e periférico. Estamos sós. Mas sabemos que elas servem como caminhos de amplificação da nossa voz rumo à conquista de solidariedade popular internacional – essa sim, fundamental para qualquer causa dos povos oprimidos. E sabemos que, além de expor nossos opressores, este tipo de denúncia permite estabelecer novas pontes para a troca de tecnologias de sobrevivência popular.

Além disso, as esferas jurídicas nacionais – cuja missão sempre foi a proteção do status quo – foram corroídas para além do remediável pela operação Lava-Jato. Do golpe pra cá, a retórica genocida só cresceu. Witzel, que prega “tiro na cabecinha”, governa o Rio de Janeiro. Dória, que defende “atirar para matar”, governa São Paulo. Bolsonaro, que queria legalizar milícia, governa o Brasil. Nenhuma dessas declarações – todas convertidas em prática administrativa – considera minimamente a existência de uma Constituição. O fato de essas pessoas seguirem em seus cargos demonstra, pura e simplesmente, que o Judiciário também caga e anda pra Constituição, algo que as margens sempre souberam. Se o Judiciário brasileiro não nos reconhece como sujeito de direitos, por que deveríamos reconhecê-lo?

Toda quebrada é uma colônia sob o domínio de forças de ocupação, usem elas o uniforme de uma companhia petrolífera, da Coca-Cola, da Blackwater, do exército israelense ou da PM

Nós, povo preto, pobre, indígena, nunca deixamos de ser escravos no Brasil. O que se espera de nós é silêncio, resignação, cabeça baixa e trabalho duro.  Nossos territórios não passam de colônia de extração para essa elite entreguista, saudosa da escravidão. Se das terras indígenas, eles querem arrancar recursos naturais e destruir a cultura (porque, para eles, índio não tem cultura), das nossas periferias, querem extrair a cultura e mais-valia, lucrar com o que criamos, sem permitir que a gente sobreviva. O que é isso? Isso é estrutura de colonização, é extrativismo para alimentar os luxos da metrópole. Neste sentido, toda quebrada é uma Faixa de Gaza; todo pobre é um palestino. Todos estamos sob o domínio de forças de ocupação, usem elas o uniforme de uma companhia petrolífera, da Coca-Cola, da Blackwater, do exército israelense ou da PM.

E a elite sabe disso, tanto que o mundo inteiro importa de Israel tecnologia bélica de contenção de massas. Os territórios ocupados de lá são o laboratório da repressão, do apartheid e do genocídio ao redor do planeta. E é isso que queremos deixar claro quando denunciamos nossas elites às esferas internacionais. Queremos deixar claro que sabemos de onde emana a maldade, conhecemos os interesses por trás dela e sofremos o mesmo que outros povos oprimidos. Como os curdos da Turquia, que por décadas tiveram seu idioma criminalizado, temos o nosso idioma, o funk, criminalizado. Como o povo nativo dos Estados Unidos, que pode ser arrancado de suas casas para ceder espaço a oleodutos que destróem lençóis freáticos, nós não temos o direito sobre o nosso território. Como as judias etíopes de Israel, que viram sua taxa de natalidade decrescer 50% em dez anos por causa de uma prática governamental nazista de esterilização compulsória, as mulheres pretas no Brasil enfrentam os maiores índices nacionais de violência obstétrica. O “crime contra a humanidade” é o modus operandi dessa contra-revolução elitista internacional que enfrentamos. Se o problema é global, a esfera jurídica para enfrentá-lo também tem de ser. Vamos ocupar o Tribunal Penal Internacional. #OcupaTPI

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