Arte: Laerte Coutinho

Sabe qual a maior diferença do Jair Bolsonaro pros outros líderes que falaram na abertura da Assembleia Geral da ONU? Não é o fato de ser um mentiroso compulsivo. Ali, todo mundo mentiu tanto, que difícil é achar verdade nas atuações da última segunda-feira. O que distingue nosso presidente no palco do cinismo é sua incapacidade de distinguir política de Estado de política de governo. Ao contrário dos outros dignatários, ele não parecia tentar modelar o mundo de acordo com os interesses de seu país mas, se muito, agradar de forma rasa e provinciana, aqueles que ele tem na mão (seus seguidores na terrinha) e aqueles que o têm na mão, a administração Trump.

Talvez vender-se como um “homem forte”, que “fala grosso” e “não tem medo de ninguém” seja uma estratégia eleitoral precoce; talvez o caminho bolsonarista para transformar em fato a concepção ideológica de que este país é incapaz de existir no mundo, a não ser como um triste protetorado estadunidense com mais de 200 milhões de habitantes. Mas o fato é que internamente, Bolsonaro sabe que não precisa do apoio de 90% da população para governar, basta manter engajados, prontos para o combate, os vinte e poucos porcento de protofascistas. O problema é que a Tribuna da ONU não é um trio elétrico verde-e-amarelo no Leblon, mas o palco geopolítico mais importante do planeta.

A plateia reunida em Nova York é experimentada o suficiente para saber que não faz sentido um país subalterno ter uma política externa conservadora: é ridículo que quem está por baixo lute para conservar o status quo. Independentemente de governo, o Estado brasileiro tem uma tradição diplomática de diálogo e multilateralidade, localizada, portanto, à esquerda dos desígnios imperiais das potências que ocupam o Conselho de Segurança, por exemplo. Demonstrando profunda ignorância histórica, Bolsonaro apontou o dedo ao conjunto das Nações Unidas, a quem acusou de ter “aplaudido socialistas”. Vá lá que esse discurso cole com seu eleitorado. Mas a ONU sabe que o Brasil nunca teve um governo socialista. Lula (assim como Dilma Rousseff, FHC ou mesmo Michel Temer e José Sarney) subiu ao púlpito não para falar em nome próprio, mas de uma tradição diplomática. O que foi aplaudido foi a coerência do Estado, que gera confiança externa numa nação.

É justamente essa confiança que se abala quando o presidente exibe desconhecimento ou desprezo pela história da diplomacia do seu país. Não só porque ele demonstra não ter posição geopolítica – ou pior, a aspiração megalômana de reinciá-la do zero –, mas porque deixa transparecer para aliados e adversários o grau de corrosão de sua base diplomática. Afinal, o mundo sabe que o Itamaraty é um organismo hierárquico, cujas carreiras são construídas de forma sólida, profissional e estável, a partir de concurso. Isso significa que as pessoas que compõem a base diplomática da gestão Bolsonaro são, em grande parte, as mesmas que compunham a diplomacia petista. Romper com a tradição significa desautorizar toda a base técnica das Relações Exteriores.

Não foi a inclinação para a distorção da realidade, mas essa visão acanhada, a-histórica e antipatriótica o grande distintivo de Jair Bolsonaro.

Sempre fez parte do exercício do poder a capacidade de divorciar o ideal do real. Mas isso se agravou no pós-2008. Desde a chamada crise da dívida, ficou claro que os fiadores do regime eletivo não eram quem escolhia, mas quem pagava os representantes. Quando a economia global ameaçou colapsar, as grandes democracias liberais optaram por fazer a base da pirâmide pagar pela farra financeira do andar de cima. Isso escancarou a incapacidade do capitalismo em conviver com a democracia.

Assim, paixões revolucionárias começaram a aflorar no seio da sociedade, como as que vimos na Primavera Árabe ou nas Jornadas de Junho no Brasil. Sobraram poucas saídas para a sobrevivência da elite político-econômica. Duas delas: manter a aparência de normalidade institucional enquanto se aprofunda a repressão e a exclusão, sufocando as aspirações políticas da base, seja na porrada, seja pela precarização; reorientar a raiva da sociedade para fora da causa real do sofrimento (basicamente, a exploração do pobre pelo rico). Ou seja, usar os mais vulneráveis como bode expiatório do sofrimento causado pela desigualdade no capitalismo. Perdeu o emprego? Em vez de expropriar um banqueiro que fala de crise financeira enquanto ostenta lucro recorde, mata o seu vizinho, que além de pobre como você, é imigrante. É culpa dele que você não tem trabalho.

Bolsonaro e Donald Trump mandaram às favas a aparência de normalidade em seus discursos. Os outros interlocutores da abertura da Assembleia Geral operaram no trinômio repressão-precarização-normalidade institucional. E vale a pena a gente se debruçar um pouco sobre seus discursos para ver como essas diferenças operam.

Trump, que sabe que a força de um império é proporcional à falta de soberania de todo o resto do mundo, fez um discurso abertamente colonialista, disparando contra os inimigos da vez: China, Venezuela e Irã. Se nos dois primeiros casos, o discurso bateu nos temas recorrentes da guerra comercial e do apelo à mudança de regime, respectivamente, o mandatário dobrou a aposta sobre o Irã, ao condenar abertamente qualquer país que alimente sua “sede de sangue”. Foi um recado à Europa e, particularmente, à França, cujo presidente Emmanuel Macron se reuniu com o líder iraniano Hassan Rohani à margem da Assembleia Geral. O que Trump dizia, com voz calculadamente baixa para expressar seriedade, era que os Estados Unidos não aceitarão nenhum tipo de relação com Teerã que não seja bélica.

A isca da vez, mais do que o programa nuclear é a acusação de que Teerã estaria por trás do ataque a uma refinaria de petróleo, ocorrido na semana passada na Arábia Saudita. Só que a autoria já foi assumida pelas forças armadas houthis, que enfrentam o expansonismo de Riad numa guerra devastadora no Iêmen e, por isso, têm muito mais razão para tentar rachar a economia do Estado wahabista do que o Irã. O problema é que os houthis são o inimigo errado, Washington já está em guerra contra eles e precisa de um novo inimigo pro complexo militar industrial chamar de seu. É a lógica do bode expiatório. O lema é: “Não importa o pai da criança, mas quem nós queremos que assuma”.

Em linha oposta, o chefe turco, Recep Tayyip Erdogan, fez o esperado: falou de imigração. Desde que aceitou virar o tampão da Europa e fechar a fronteira para a população síria em troca de alguns bilhões de euros, o sultão (como é conhecido desde que investiu mais de US$ 1,2 bilhão na construção de um palácio de 1.150 quartos para morar com a família na capital Ancara) tem jogado com a ameaça de deixar o norte global lidar por conta própria com as crises que causa ao redor do mundo.

E briga para que o mundo classifique qualquer organização curda como terrorista, de modo a justificar sua guerra contra o independentismo curdo no sul do país e homogeneizar a Turquia debaixo da identidade islâmica que lhe dá sustentação política.

Para juntar comoção com a crise migratória (e subornar os europeus para contê-la) e criminalização do autonomismo curdo, Erdogan apelou para a trágica foto do garotinho Ailan, cujo corpo inerte foi encontrado de bruços numa praia do sul da Turquia, em setembro de 2015. Ele teve o cuidado de ocultar, é claro, o sobrenome etnicamente carregado do menino: Kurdi. Ailan era curdo, nascido em Kobane, capital da revolução feminista curda que ele tenta esmagar.

Outra poliana foi o presidente do Egito, Abdel Fattah al-Sissi, que discursou à revelia das contendas políticas locais. Desde fevereiro, ele vem executando prisioneiros a torto e a direito (de acordo com a própria ONU, a imensa maioria dos condenados confessou crimes sob tortura); em junho deste ano, Mohammed Morsi, o único presidente democraticamente eleito na história do Egito e deposto por um golpe militar comandado pelo próprio al-Sissi em 2013, morreu na cadeia de forma suspeita, sucitando inquérito das Nações Unidas. Dois dias antes do presidente falar de direitos humanos na ONU, uma onda de protestos varreu o país e a resposta governamental foi a prisão (sem mandado judicial) de mais de 2 mil pessoas, incluindo toda a liderança do principal partido de oposição à esquerda, além de seus advogados. Ou seja, climão às margens do Nilo.

Mas Al-Sissi fingiu que nada estava acontecendo: falou de cooperação econômica regional e defendeu tópicos que são quase senso comum, como direitos humanos, combate ao terrorismo, livre-comércio, solução política para os conflitos na Líbia, na Síria e no Iêmen, além da pauta (vaga, já que o contexto internacional caminha na direção oposta) da criação de um Estado Palestino. Ele falou o que se esperava que dissesse, porque sabe que subiu ali como representante de uma história diplomática, não como autor de um golpe de Estado, suspeito de torturar e matar seus opositores.

Só fascistas falaram no show de cinismo da ONU na segunda-feira. Mas a diferença de estilo tem a ver com o conhecimento que cada um tem de suas posições geopolíticas.

Trump escolheu bodes expiatórios e distribuiu ameaças em um discurso diplomaticamente reacionário, porque sabe que o Império, cujo exército ocupa o planeta inteiro e a moeda lastreia todas as trocas comerciais, tem o poder de fazer valer suas vontades. Os dois chefes do Terceiro Mundo que mantiveram o aspecto de normalidade institucional o fizeram com a certeza de que seu fascismo doméstico pode oprimir as populações locais, mas não chega a ameaçar as grandes potências. Se Erdogan pesou na questão migratória é porque sabe do trunfo do Estado turco.

E Bolsonaro? Bolsonaro blefa achando que o mundo não conhece suas cartas, enquanto elas estão escancaradas na mesa. Ele tenta ser o escapamento furado da Ferrari trumpista: faz barulho, mas não tem motor. Ao fazer isso, o presidente brasileiro expõe um flanco imenso, mostra que não tem política de Estado e se limita a usar, num espaço não-eletivo, a mesma estratégia de guerrilha de rede social que usou nas eleições. Aos olhos do mundo, não passa de um oportunista estridente que surfa a onda do caos, mas não conhece os interesses de longo prazo de seu próprio país; alguém tão preso ao processo que o alçou ao poder, que é incapaz de exercê-lo.

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