
Fábio Gusmão conta os bastidores da reportagem que inspirou ‘Vitória’, filme com Fernanda Montenegro
“Sonho que virou realidade”, diz o jornalista e escritor ao ver a história da alagoana Joana da Paz nas telas do cinema
Por Lohuama Alves
A coragem de uma mulher comum e o olhar atento de um jornalista deram origem a uma das histórias mais marcantes do jornalismo investigativo brasileiro. Munida de uma câmera e de um desejo de Justiça, uma alagoana ousou desafiar o tráfico de drogas no Rio de Janeiro, registrando uma realidade que muitos preferiam ignorar.
A reportagem sobre Joana Zeferino da Paz, “Dona Vitória”, assinada pelo jornalista Fábio Gusmão, não apenas revelou a gravidade da violência na Ladeira dos Tabajaras, em Copacabana, mas também transformou sua protagonista em símbolo de resistência. A repercussão da história levou à publicação de um livro e, anos depois, inspirou o filme “Vitória”, estrelado por Fernanda Montenegro, que agora leva a trajetória desse exemplo de mulher para as telas. Em entrevista à Cine Ninja, Fábio Gusmão compartilhou os bastidores dessa investigação que marcou sua carreira e a história do jornalismo brasileiro.
O começo de tudo
Em março de 2004, o então jovem jornalista buscava uma matéria para a edição de domingo quando soube, por meio de uma fonte na Coordenadoria de Inteligência da Polícia Civil, sobre uma senhora que havia deixado fitas de vídeo na delegacia. O material continha gravações feitas por ela mesma, registrando a movimentação do tráfico de drogas na Ladeira dos Tabajaras, em Copacabana.
Ao assistir às fitas, Fábio percebeu que estava diante da “história da sua vida”. Dona Joana – que mais tarde ficaria conhecida como Dona Vitória – fazia um diário digital, narrando tudo o que via. “Passei a madrugada inteira decupando as fitas. Era impactante. Eu sentia que ali estava o meu prêmio Esso”, relembra.
O impacto das imagens era evidente, mas a publicação da matéria exigia cuidados. O apartamento de Dona Joana ficava extremamente próximo a uma boca de fumo, o que representava um risco iminente para sua vida. “Eu sabia que não poderia publicar nada enquanto ela morasse lá. O risco era grande. Mas ela ficava impaciente, queria que a história fosse contada o quanto antes”, relata Fábio Gusmão.
O impasse durou mais de um ano e meio, período em que o jornalista fortaleceu seu vínculo com a personagem. As visitas frequentes incluíam cafés e longas conversas sobre sua vida. O objetivo era ganhar sua confiança e convencê-la a aceitar uma proteção adequada. Com a intermediação da segurança pública, Dona Joana finalmente aceitou deixar o local, permitindo que a reportagem fosse publicada com mais segurança.

O nascimento de “Dona Vitória”
A matéria foi publicada em 24 de agosto de 2005 no jornal Extra, ocupando um caderno especial de seis páginas. O nome “Dona Vitória” surgiu de uma necessidade: a personagem precisava de um nome simbólico para proteger o seu verdadeiro.
“A identidade dela estava se perdendo e eu não poderia deixar que isso acontecesse. O Octávio Guedes, editor-chefe da época, sugeriu ‘Dona Vitória’ porque representava o feito dela. Achei perfeito e publicamos em meio a uma série de desafios. Tínhamos um prazo curto para entregar, mas conseguimos”, conta o jornalista.
O impacto foi imediato no Brasil e em outros países. Outros veículos de comunicação repercutiram a história. “Encontrei com ela em uma entrevista ao Fantástico e ela disse que estava com a alma lavada. Foi um momento de reconhecimento que ela tanto desejava”, relembra Gusmão.
Após a repercussão da reportagem, o jornalista sentiu que a história de Dona Vitória precisava ser registrada de forma mais aprofundada. “No dia seguinte à publicação da matéria, eu decidi escrever o livro. Levei um mês para concluí-lo e mais um ano para encontrar uma editora, mas o nome eu já tinha: Dona Vitória da Paz. Só eu sabia que o sobrenome real dela era ‘da Paz’. Então, era o mínimo que eu podia fazer por ela e, ao mesmo tempo, o máximo, pois ela queria ser reconhecida”, contou Gusmão.
O resultado da história publicada também transformou a forma como o jornalista via sua profissão. “Não fui o primeiro a contar a história de uma grande pessoa, mas essa experiência me trouxe uma nova visão sobre o jornalismo na prática. Um cuidado que eu já tinha, mas que, após esse um ano e meio vivendo tudo isso, só se intensificou”, afirmou.
O jornalista também reforçou que, durante a apuração, não ficou apenas esperando a análise do material enviado por dona Joana. “Enquanto a investigação não avançava, eu seguia correndo atrás, fazendo o meu trabalho com outras denúncias e furos. Esse esforço contínuo fez toda a diferença na prática”, concluiu.
Do jornal para as telas: o caminho até o cinema
Com um vasto material em mãos e o sucesso do livro, a publicação abriu caminho para a adaptação cinematográfica da história.
“A negociação para o filme começou em 2005, com o diretor e produtor de filmes, Andrucha Waddington, mas a produção só avançou anos depois. Em 2016, dona Joana participou ativamente das discussões sobre o roteiro. Seu desejo era ser interpretada por Fernanda Montenegro, uma de suas atrizes favoritas. Andrucha teve o cuidado de transformar a história em longa após anos para que ela não fosse identificada e ficasse em perigo”, detalha Gusmão.
A última vez que dona Joana conversou com o jornalista foi antes da pandemia. Em 2023, no Carnaval, ele recebeu a notícia de seu falecimento. “Me veio uma onda de choro. Era o momento de revelar quem ela realmente era. Então foi quando eu fiz a matéria falando da morte da dona Vitória e o nascimento da dona Joana da Paz, a alagoana que todos passaram a conhecer. A matéria era sobre a vida daquela mulher que sempre viveu muito intensamente apesar de toda a violência sofrida e contei como foi o processo todo e como ela tava até aquele momento”, conta Fábio Gusmão.

Para Gusmão, ver a trajetória de Dona Vitória nas telas, com Fernanda Montenegro no papel principal, é a realização de um sonho. “Eu queria fazer algo relevante socialmente. Não imaginava que seria dessa forma. E agora, ver a maior atriz brasileira e uma das maiores do mundo interpretando essa grande mulher é emocionante. Dona Joana ficaria muito feliz se estivesse viva”, afirma.
O jornalista também se viu retratado no filme, interpretado por Alan Rocha. “Ele conseguiu captar minha essência. Assisti e revivi tudo aquilo novamente. Foi muito emocionante. Todo o elenco está de parabéns. Eles foram muito sensíveis e fiéis aos fatos”, diz.
Uma história atemporal
“Estou vivendo um sonho da vida real. Eu estou muito feliz. Estou tomado pela gratidão. Foi um período muito difícil na época. Então, quando compraram os direitos pela primeira vez, eu fiquei muito feliz. Eu lembro que quando eu era criança, eu sonhava em entrar para a história. Eu queria fazer algo relevante socialmente, queria fazer a diferença e na profissão que eu escolhi, eu queria isso, mas não imaginava como e veio por meio de uma grande história que é tão relevante e tão impactante e virou ficção”, afirmou Gusmão.
“‘Vitória’ é uma obra necessária. É um filme sobre coragem, sobre solidão, sobre uma conexão inesperada entre uma mulher e um jornalista. É impossível não se emocionar”, conclui.
A história de Dona Vitória não apenas desafiou o tráfico, mas também eternizou uma personagem que, com sua coragem, fez história no Brasil.
Com elenco composto ainda por Linn da Quebrada, Laila Garin e Thawan Lucas, o filme Original Globoplay, com produção da Conspiração, estreia nos cinemas de todo o Brasil em 13 de março, com distribuição da Sony Pictures.