Por Débora Anunciação

“O filme se chama ‘Bandida’, mas a história é de uma mulher complexa, humana”. Assim Maria Bomani define o longa “Bandida – A Número Um”, dirigido por João Wainer (A Jaula), que estreia em 20 de junho nos cinemas brasileiros. A atriz conversou com o Cine NINJA sobre a produção baseada na obra autobiográfica de Raquel de Oliveira, primeira mulher a chefiar o tráfico da Rocinha.

Filmado na comunidade Pavão-Pavãozinho, na zona sul do Rio de Janeiro, o longa é ambientado na Rocinha e protagonizado por uma atriz criada na comunidade da Cidade Alta, em Cordovil, na zona norte do Rio.

“Bandida” acompanha a trajetória de Rebeca (Maria Bomani), vendida pela própria avó aos nove anos para o chefe do morro da Rocinha, o bicheiro Amoroso (Milhem Cortaz). A trama retrata as mudanças de poder na comunidade e o percurso que levou a protagonista à chefia do tráfico na Rocinha dos anos 1980.

O filme, distribuído pela Paris Filmes, tem roteiro de Patricia Andrade, Cesar Gananian, João Wainer e Thais Nunes. O elenco ainda inclui nomes como Jean Amorim, Otto, Wilson Rabelo, MC Marechal, JP Rufino, Natália Lage, Natália Deodato, Thaís Gullin e Michely Gabriely.

Cine NINJA: Maria, como foi o processo de preparação para interpretar Rebeca, uma personagem com uma história tão intensa e complexa?

Maria Bomani: Assim que recebi o convite, em abril, percebi que tinha uma longa jornada pela frente. Primeiro me preparei bastante através da terapia, entendendo a grandiosidade do convite para estrear no cinema como protagonista e o que isso significava para mim e para minha carreira. Depois preparo físico, para lidar com a rotina corrida de gravações. Antes das preparações do filme, fiz algumas pontuais com Fátima Domingues, que me ajudou muito a não me sentir perdida ou insegura. Depois, as preparações com Marcio Mehiel e Léo Feijó foram essenciais para fazer tudo com qualidade e dividir bem as fases da Rebeca, foi incrível tê-los no set comigo o tempo todo!

CN: Você entrou em contato com a Raquel de Oliveira?

MB: Não tive essa oportunidade! Mas nos falamos por vídeo chamada rapidamente depois que ela assistiu ao filme e estamos ansiosas para nos conhecermos! Ela disse que gostou muito da minha interpretação, fiquei muito feliz com esse feedback.

CN: Quais foram os maiores desafios ao encarnar uma figura real como ‘Rebeca’, especialmente considerando o contexto em que ela viveu?

MB: Acho que o desafio não foi encarar somente por ser uma figura que já existe, mas por tantas Rebecas que existem. E por todo o contexto por trás da história dela: relatar uma vivência favelada de outras décadas. Ver a Michely Gabriely dando vida a Rebeca na infância e depois dar continuidade a essas características e personalidade comum. Acredito que muitas pessoas vão se identificar com a Rebeca, de diferentes modos, porque o filme se chama “Bandida”, mas a história é de uma mulher complexa, humana.

CN: O que mais te surpreendeu na história enquanto você lia o livro “A Número Um” e se preparava para o papel?

MB: A riqueza de detalhes. Descobrir coisas bobas sobre apelidos, perfume, uma marca ou música favorita, ajudam muito na construção de uma personagem. Ouvir a história em primeira pessoa, de uma outra década do Rio de Janeiro, o início do tráfico e todos os relatos no livro também foram informações interessantes. É um livro muito forte.

CN: Como foi trabalhar com o elenco do filme?

MB: Incrível!! Todos tivemos muita sintonia e sinto que tive trocas muito interessantes até com os atores que gravaram poucas diárias. Apesar de cansativo, o set era sempre divertido, principalmente nos dias que tinham os meninos do bonde do Pará ou da Rebeca. Eu e Jean Amorim também construímos uma amizade e parceria que facilitou muito a construção do amor de nossos personagens. Num geral, guardei memórias muito boas das semanas de gravação!

CN: Você já tinha algum conhecimento prévio sobre a Rocinha dos anos 1980? Se sim, como isso influenciou sua interpretação?

MB: Não tinha. Busquei me informar bastante antes do filme, mas o João Wainer, por ter um olhar do jornalismo, me trouxe muitas informações. Ele levava para as cenas o subtexto da vivência de uma Rocinha daquela década que ajudou bastante a contar a história.

CN: O filme aborda temas pesados como violência, corrupção e tráfico de drogas. Como você lidou emocionalmente com esses temas durante as gravações?

MB: Muita terapia (risos). Num geral, como atriz, a gente aprende a não levar personagem para casa e o Marcio Mehiel se preocupava muito com isso. Ele, o João Wainer, as assistentes de direção, foram todos muito atenciosos e cuidadosos na hora de fazer as cenas mais pesadas. Não foi tão desconfortável e logo após as cenas, já me recuperava sozinha ou com ajuda dos meus preparadores.

CN: Quais foram as cenas mais desafiadoras para você como atriz?

MB: Eu diria o filme inteiro, rs! Metade do filme são cenas difíceis. As de ação, briga, desequilíbrio… não me lembro de uma diária em que saí de casa pensando que seria um dia fácil. Às vezes gravávamos duas décadas no mesmo dia e não era feita só a mudança de caracterização, mas também das características da Rebeca adolescente e da Rebeca adulta. Isso também era desafiador.

CN: Como você enxerga a relevância social do filme “A Número Um” no contexto brasileiro atual?

MB: Acredito que o cinema nacional precisa contar histórias nacionais. É um momento de resgate à cultura, resistência e o filme conversa muito com esse discurso. Apesar de se passar em outra época, discute temas que são bem atuais.

CN: Considerando a questão racial no Brasil, como você acredita que a trajetória de Rebeca reflete os estereótipos associados às mulheres negras?

MB: O nome do filme por si só reforça um estereótipo no imaginário do público. Anunciar que estou atuando como uma bandida também. Parece que estamos falando somente sobre agressividade e animalização, mas a história dela traz o público a refletir sobre recortes sociais e raciais. A Rebeca é complexa e era exatamente desse ponto de vista que eu gostaria de contar a história de uma personagem que fosse um estereótipo, como uma bandida. Ela não segura só um fuzil. Eu gostaria de ter a oportunidade de contar sobre outros tipos de mulheres negras, porque somos múltiplas: em profissões, personalidades, afetos. Precisamos nos sentir representadas em outros contextos também.

CN: O que você espera que o público leve consigo após assistir ao filme?

MB: Que o brasileiro passe a valorizar mais a própria arte e cultura. Também espero que a história do filme os leve a reflexões mais profundas sobre a guerra às drogas, pois no imaginário do morador do asfalto: todo favelado é bandido e conivente com o tráfico. As pessoas aplaudem operações policiais que levam a vida de inocentes e só enxugam gelo ao invés de fazer algo efetivo nesta pauta.

CN: Como atriz e cantora, como você equilibra essas duas carreiras e como uma influencia a outra?

MB: Acho que existe momento para tudo e priorizo projetos importantes para mim nas duas áreas. Sempre me pedem para dizer a preferência entre as duas carreiras e não sinto essa necessidade de escolher. As duas me contemplam de formas diferentes e me sinto realizada trabalhando as duas em paralelo. A única influência que sinto entre as duas é no processo de criação. Uso playlist para personagens e sou muito visual para compor músicas.

CN: Recentemente você alterou seu nome artístico e acrescentou “Bomani”. Há alguma conexão com o período de pré-lançamento do filme? O que essa mudança representa para a sua carreira?

MB: Já era um desejo antigo e achei que o momento era propício para essa escolha. “Bomani” me apareceu graças a espiritualidade e num momento de muito autoconhecimento e reestruturação num geral. Sinto que é um momento de apropriação da minha carreira e das minhas vontades. O significado desse sobrenome para mim é resgate: de ancestralidade, auto estima, autonomia.

CN: A participação no Big Brother Brasil influenciou essa mudança e/ou a preparação para o filme em algum sentido?

MB: Favoreceu o convite do filme, pela visibilidade que o programa dá!

CN: Pode adiantar os projetos para o futuro?

MB: Mudança de casa e novos passos na carreira musical. O resto vou sentindo devagar com a recepção do filme. Muitos convites estão vindo e alguns projetos estão sendo conversados entre minha equipe e eu, mas tudo com a cabeça fria para selecionar as melhores oportunidades para o momento. Estamos todos empolgados com essa nova fase!