Por Fernanda Merizio

O cineasta brasileiro Lincoln Péricles, conhecido como LK, marcou presença na competição internacional de curtas-metragens da 36ª edição do FIDMarseille, um dos mais relevantes festivais de cinema contemporâneo, reconhecido por revelar novas vozes e por experimentar formas radicais e insurgentes do cinema independente.

LK participou com a estreia mundial de Filme sem Querer, que será distribuído pela Cajuína Audiovisual. O curta foi concebido de forma coletiva com moradores do Capão Redondo e tensiona, com lucidez crítica e ironia afiada, as contradições entre a potência criativa das periferias e o cinismo de instituições que instrumentalizam essas imagens para captar recursos, sem garantir autonomia ou participação popular efetiva.

No enredo, três jovens que vivem e criam coletivamente na quebrada tentam acessar uma bolsa em um instituto de cinema durante a pandemia. A obra fere a gramática institucional, desmonta o discurso oficial e transforma o cinema em gesto de insubordinação estética. A sabotagem é o método. A quebrada, o centro.

Cine Ninja: Eu agradeço muito por você estar aqui e por essa conversa que vai se iniciar. O primeiro filme seu que eu vi foi JairBoris, que me tocou profundamente! E eu fiquei encantada também com Filme sem Querer, exibido neste ano de 2025, aqui no FIDMarseille.

Obviamente, percebi a autoria do seu trabalho em nível estético e político — que é algo de uma potência surreal. E acho que essa força no seu cinema está sendo sentida no Brasil inteiro, né? Um gesto cinematográfico que envolve tanto as pessoas à sua volta quanto todas aquelas que assistem aos seus filmes.

Eu queria que você falasse um pouco sobre como surgiu esse filme…

Lincoln Péricles (LK): Acho que desde a primeira vez que a gente se trombou, eu vi que você ficou muito tocada. E me tocou muito a forma como você falou também sobre o trampo. Então… da hora, né? Meses depois a gente está se trombando de novo, na França. Mas, principalmente, num território histórico que é Marselha, com todas as lutas imigrantes aqui. Então eu agradeço mesmo.

Esse filme nós fizemos logo quando “acabou” a pandemia. Então… “acabou” entre aspas, né? Porque eu acredito que a gente ainda está vivendo os efeitos da pandemia na favela. E, principalmente pra nós, artistas marginalizados, os efeitos seguem aí até hoje. E na pandemia a gente estava sob o governo fascista do Bolsonaro, que não queria nem dar um auxílio emergencial pra gente.

Quando bateu a pandemia, eu estava dando aula numa favela lá em Fortaleza, inclusive. Estava lá no Bom Jardim. Tinha dado minha segunda aula no Centro Cultural do Bom Jardim, e tive que voltar pra São Paulo de última hora. Aí juntei com aquelas pessoas que você vê no filme. A gente se reuniu porque morávamos juntos. E nesse sentido: estamos juntos, vamos sobreviver! Aí os meses foram passando.

Porque, assim, eu tenho uma carreira consolidada de 15 anos, né? Tipo, eu sou reconhecido na minha quebrada. Consigo acesso a alguns lugares que outras pessoas da quebrada não conseguem, tá ligado? Mas, ao mesmo tempo, eu nunca consegui um orçamento de mais de 100 mil reais. Então, tipo assim, o lugar que eu consigo acessar também é limitadíssimo. E mesmo esse espaço tão limitado, o meu povo não consegue acessar.

Mas voltei pra quebrada falando: “Pô, é isso! Vamos continuar. Estamos juntos!”

E a realidade se impôs no sentido de, tipo: o governo tá nem aí pra você. Você voltou pra base da pirâmide. A gente ficou pobre. Eu e minha companheira na época começamos a lidar com questões de fome. Meu pai e minha mãe — minha mãe é secretária, meu pai é funcionário público, mas num cargo baixo — estavam bem, pelo menos assim, né? Mas criando meus sobrinhos, minha irmã… então era uma questão de sobrevivência!

E lá em casa a gente enfrentou, de fato, esse lugar de: quem somos nós dentro do cenário cultural brasileiro? A gente foi parar lá embaixo automaticamente! Aí a gente precisou do auxílio emergencial, e eu sobrevivi toda a pandemia com os 600 reais do governo. E no final da pandemia, alguns amigos me deram dinheiro pra eu sobreviver, porque eu não tinha grana. E, ao mesmo tempo em que eu não tinha dinheiro, comecei a receber convites de instituições do tipo: “Faz um filme sobre a pandemia? Sobre como a pandemia está na favela.” Me ofereceram um pouco de grana.

E mesmo quando começaram a chegar umas propostas de um dinheiro maior, a gente estava numa depressão tão profunda, enquanto coletivo, que eu pessoalmente falei: “Mano, eu tô só sobrevivendo! Não quero fazer filme sobre pandemia. Foda-se a pandemia! Eu não quero ficar contando pra quem é de fora. Eu quero organizar com o meu povo aqui, pra fazer filmes pra viver, né?”

Então foi um momento de uma contradição muito latente, em que as pessoas estavam interessadas em saber o que estava acontecendo na favela através do meu olhar, mas não estavam interessadas no que estava se passando na minha casa. Se eu tinha comida ou não. Se as pessoas do meu coletivo estavam bem ou não, tá ligado?

Então era uma contradição muito forte no meio da pandemia. Aí, lá pro final da pandemia, eu ganhei um fundo, ganhei uma grana. E esse dinheiro, automaticamente, quando entrou, foi distribuído de forma justa entre toda a equipe, todo o meu coletivo, todas aquelas pessoas que participam do filme. E aí eu falei, tipo: “Bora fazer um filme sobre esse processo.” Fazer um filme sobre as instituições que querem muito lucrar com a gente, mas não estão realmente interessadas no que a gente está passando, tá ligado? E como esse processo é contraditório — de a gente ter que, às vezes, se submeter a fazer uma coisa, tá ligado? Só pra garantir o dinheiro, botar comida na nossa mesa e tal.

Cine Ninja: Quando eu vi esse filme, eu vi um autorretrato da sua forma de construção, de onde você partiu e com quem você trabalha, sabe? E você faz esse jogo que também desafia a linguagem institucional e cinematográfica, né? Eu entendo que tem no seu filme que vem desafiar essa questão da linguagem do cinema, né? Isso porque, esse filme, de certa forma, é documental! Às vezes um pouco híbrido, mas ainda sim documental, né? Então é um gesto documental que desafia essa linguagem cinematográfica. E eu achei isso muito bonito!

Lincoln Péricles (LK): Foi muito rápido, assim, tudo, né? E eu já tinha essa ideia de fazer um filme sobre o erro. Eu queria fazer um filme sobre como seria a possibilidade do meu povo fazer algo errado. Porque eu sempre fui cobrado a fazer tudo certo, tipo… Eu tenho uma vida, assim, muito difícil, assim, no sentido… Sabe? Uma juventude difícil, uma juventude que se não fosse o futebol, eu estaria na criminalidade. Então, eu tenho um passado, assim, que, tipo, eu não podia cometer erro! Mesmo no crime eu não podia cometer erro. Depois, quando eu fui estudar, eu também não podia cometer erro. Eu tinha que ser o melhor, tá ligado?

E aí eu comecei a ver que a burguesia artística, ela tinha o direito ao hobby, o direito ao erro, e eu nunca tive isso, tá ligado? Aí eu troquei ideia com as parceiras e com os parceiros de coletivo e falando assim, mano, o filme começa pelo erro. E se a gente fizesse um filme errado, ele ainda assim seria muito mais interessante do que um playboy fazendo um filme sobre a quebrada, tá ligado? Então, essa é a premissa do filme. Vamos fazer um filme errado e vamos apresentar o resultado desse erro.

Então, esse autorretrato que você diz, ele é muito real, assim, né? E eu acho que ele é real principalmente porque eu acho que nosso povo – ou comunidades marginalizadas – quando a gente tá fazendo uma coisa que pode ser estritamente pessoal, né? Chega num momento onde a gente tá com os outros e a gente já não vira mais a gente.

Eu não consigo nem explicar em palavras isso, assim. Eu só sinto que eu tô criando quando eu já não sou mais eu, assim. Quando tem algo passando por mim, assim, sabe? Porque o cinema é uma manipulação de energias muito forte, tá ligado? E hoje a gente manipula energia através dessas ferramentas, de gravadores, de câmeras, que nossos ancestrais manipulavam de outra forma. Então, não é nada novo nesse sentido, sabe? As tecnologias são muito antigas!

Então, esse autorretrato, ele é algo sobre mim, mas ele perpassa por mim e vira um retrato de muitas outras coisas, né? E quando eu começo a construir com os atores e as atrizes ali, a gente começa a descobrir que a gente não quer fazer só um filme sobre o erro, a gente quer comentar o erro também!

Então o filme cria essa forma a partir disso, de tipo, estamos fazendo um vídeo institucional. Vamos mostrar os bastidores desse vídeo institucional? Aí depois a gente assistia junto esse material, aí os atores e as atrizes falavam pra mim: “Pô, vamos fazer essa cena?”. Aí a gente dormia junto na mesma casa e depois no dia seguinte criava uma nova cena. Se a gente não gostasse, tipo, assistia junto, não gostei, vamos criar outra? Então foi um processo muito participativo nesse sentido, onde todo mundo praticamente do set é roteirista do filme também, porque quem foi dando o continuar, o caminhar do filme, foi essa coletividade.

E a minha missão como diretor… Eu sempre falo aqui na França, por exemplo, eles têm muito essa coisa do autor, esse culto ao autor. E como você falou: “Seus filmes são muito autorais”. Eu gosto sempre de apagar essa palavra autoral e falar assim: eu não sou autor, sou um trabalhador. Eu sou a pessoa que eu conheço que mais trabalha, sabe? E eu odeio trabalhar, eu não trabalho porque eu quero, eu trabalho porque eu preciso. E eu acho que a diferença nossa que vem desse país, ou de Abiayala, ou de Pindorama, a diferença nossa para os países colonizadores é que o que a gente chama de trabalho está muito mais ligado à natureza, a gente ser parte de uma natureza e não parte de uma exploração, tá ligado? Então eu não sou autor, eu sou trabalhador.

Cine Ninja: E eu acho que você já falou um pouco sobre isso, mas eu vejo também no seu filme uma forma de resistência ao arquivo. Esse arquivo escrito e que está imerso no imaginário coletivo, que nos foi imposto pelos colonizadores, né? E eu tenho a impressão que esses jovens do Capão Redondo que estão construindo esse filme contigo, o Naye Ribeiro, a Francineide Bandeira e o Jonnas Rosa, se transformam em uma resistência viva a esse arquivo. Porque existe uma projeção do filme e da presença deles no futuro, né?

Lincoln Péricles (LK): O corpo é nosso arquivo mais valioso! E proteger o seu corpo e o corpo das pessoas que estão na sua comunidade é uma das coisas mais importantes para a gente. Porque eu não faço diferença de um arquivo que foi produzido há 100 anos de um arquivo que é produzido hoje. Então, para mim, proteger esses corpos e proteger esse corpo é essencial! É essencial para o cinema, mas é essencial para uma construção de país, para uma construção de nação. Tipo assim, quais corpos esse país está protegendo?

Então, para mim, fazer filme é justamente proteger esses corpos: criar obras, criar arte em que esses corpos estão protegidos. E que eles são complexos, e que eles têm o direito de existir. Eu luto fielmente para que nossos corpos possam existir nesse mundo que a gente vive e no país que nós vivemos, no caso o Brasil. Esses corpos precisam existir e esse corpo é o arquivo mais precioso que a gente tem!

Então o cinema que a gente faz hoje é uma espécie de contra-arquivo. É um arquivo que bate de frente com o arquivo oficial da colonização! Quando a gente produz qualquer tipo de filme em que a gente esteja e preserva isso, a gente está dizendo materialmente, não só para o presente, mas também para o futuro, que tudo aquilo que tentaram construir sobre a gente é diferente. A gente está pondo de frente, a gente está colocando documentos, uma relação documental mesmo. A gente está mostrando que nós é diferente da forma que eles tentam roubar nós. Então, é justamente bater de frente num projeto de país, num projeto de estado.

E eu acho que o “Filme Sem Querer” vem totalmente para entender que ou os nossos corpos têm autonomia, ou a gente não está se protegendo. Porque se as instituições querem só um pedaço de mim, se elas querem só metade de mim, se elas querem só um pouquinho de mim, e não querem de fato ajudar o coletivo, não querem botar recurso no coletivo, como por exemplo as instituições de bairro na minha quebrada fazem, isso não é efetivo.

Dentro de um sistema neoliberal, a instituição quer escolher pessoas carismáticas de uma comunidade para falar: “Olha aqui como eu ajudo tal comunidade!”. Não precisa eleger o Lincoln Péricles! Não tem isso, tá ligado? Mas essa é a ideia neoliberal do dinheiro, do recurso, e para quem vai o recurso. Parece que essas grandes instituições querem convencer a gente que essa é a única forma de reparar. Eles nem chamam de reparação, né? Porque reparação eu estou sendo muito bonzinho de chamar de reparação, é tipo de “ajudar”. Essa ajuda é isso, é a ajuda dos eleitos!

E o nosso cinema, o “Filme Sem Querer”, ele bate de frente com essa ideia. Tipo assim, ou você está com a gente ou não está, tá ligado? Você está com nós? Não está? Tá bom, então saiba que a gente vai ter autonomia para tirar sarro de você. E foda-se! E aí dizem: “Ah, então você não vai ganhar mais o recurso”. Foda-se! Ninguém vai comer dinheiro. O Krenak fala isso: “Ninguém vai comer dinheiro!”. Eu não como dinheiro. Ninguém vai comer dinheiro, tá ligado? Ninguém come dinheiro, então foda-se! Se você não tá junto comigo, é melhor que você diga que não tá. Não vem fingir que tá.

Foto: Claire Allouche
Foto: Arquivo pessoal
Foto: Claire Allouche

Cine Ninja: Ouvir você falando me trouxe bastante coisa! A maioria das coisas eu tinha apenas uma pista. “Filme sem querer” trabalha com essa questão histórica. E me parece que é algo que vem do corpo mesmo, da sensação, do ser. Do ser que está ali. E nisso eu tenho a impressão de que às vezes você não precisa nem dirigir. Que o filme traz para você o que você é, o que você foi e o que você quer ser.

E aí eu queria saber sobre o seu olhar sobre essa construção que você está fazendo sobre a nossa história.

Lincoln Péricles (LK): Isso que você chamou de “às vezes parece que eu não estou dirigindo”… Eu aprendi a ouvir isso como um elogio. Porque isso vem de muito trabalho. Porque uma coisa que eu sempre digo é que, para a gente trabalhar dentro do cinema brasileiro e se relacionar com a imagem que o cinema construiu do meu povo, é muito trabalho que exige!

Por quê? Por exemplo, todo lugar que eu vou fora do Brasil e que alguma pessoa viu Cidade de Deus, e a referência que ela tem sobre a favela no Brasil é Cidade de Deus, eu preciso reconstruir — não digo nem desconstruir — é reconstruir. Porque já está destruída a imagem do Brasil na cabeça dessas pessoas, e eu preciso reconstruir a imagem do que é uma favela no Brasil, sendo de uma favela no Brasil.

E para reconstruir essa imagem, de novo, é muito trabalho! Então é muito trabalho com os atores, com as atrizes, com as técnicas, os técnicos, com todo mundo que está envolvido.

O trabalho da gente é também entender que a gente precisa fazer um cinema do nosso jeito, e que, para fazer um cinema do nosso jeito, a gente precisa estudar muito, tá ligado? Então, se eu sou artista e eu amo fazer esse bagulho, eu preciso estudar esse bagulho.

Não é nem que, dentro do filme, tem uma desconstrução do cinema, mas eu preciso necessariamente amassar o cinema, amassar as linguagens coloniais, para tentar construir uma linguagem que é nossa, né?

Porque eu falo uma língua agora: o português. Essa é a língua na qual a gente está se comunicando, que é uma língua imposta ao meu povo, tá ligado? O inglês, o francês e outras várias línguas são línguas impostas, são línguas que apagam origem.

E a palavra, para a minha família, sempre teve muita importância. Minha mãe sempre falou assim: “Não jogue palavras ao vento, porque as palavras não voltam.” Então, se o colonizador me tirou o direito à palavra, ele não conseguiu me tirar o direito a esse meu primeiro território, que é meu corpo, esse primeiro arquivo que é meu corpo. Ele não tirou o direito de acesso ao meu corpo. Eles tentaram muito. Eles tentam e continuam tentando.

E como o Mano Brown fala: “Cada favelado é um universo em crise.” E eu acho linda essa frase, porque eu sou um desses universos em crise, e cada companheiro e companheira que está trabalhando comigo é um universo em crise.

E toda vez que morre um moleque na minha favela, que eu perco um familiar, que eu perco alguém próximo — ou que não seja próximo, que eu perco um parente — é um desses universos que morrem, que são retirados à força desse plano.

Hoje tem essa narrativa apocalíptica de “o mundo está acabando”. Cara, nossos universos acabam o tempo todo e vêm acabando o tempo todo. Sabe, assim? Tipo, as nossas pessoas são mortas.

Então… E aí, literalmente, a gente enfrenta a última etapa do fascismo ali, que é os nossos corpos sendo atacados. Então, o colonizador não tirou isso, tá ligado? Ele mata um e mata uma de nós, mas nós estamos aqui. E essas pessoas que não estão neste plano ainda estão do nosso lado. Fora dessa materialidade, eu acredito que cada pessoa da minha favela que já não está nesse plano, ela está lutando do lado de uma tiazinha que está ali, lutando contra a polícia que assassinou o seu filho, tá ligado?

Então, tem muito trabalho nisso. E o trabalho não é estudar cinema somente, não é estudar cinema europeu, não é estudar técnica.

O trabalho é justamente estudar como nossos ancestrais criaram tecnologias para registrar e preservar a história da mesma forma que nós criamos, tá ligado? Porque se eu tenho alguma referência do que fomos, é porque alguém fez alguma coisa para que eu hoje tenha acesso a essa referência.

Então, quando eu trabalho nessa ferramenta que é o cinema, eu sinto que esse bagulho da manipulação de energia é justamente para eu conseguir acessar ferramentas que meus ancestrais já acessaram.

E tem uma história linda, né? A Priscila Nascimento, que é uma grande irmã e companheira de trabalho, que é roteirista e faz som nesse filme, está terminando um filme agora dela que chama Sonho em Ruínas, que é um filme baseado num sonho em que a bisavó dela apareceu para ela e falou assim: “Olha, minha filha, isso que você está tentando fazer eu já fiz.”

E aí ela constrói um filme onde a bisavó dela se apaixona por outra mulher e está tentando preservar a história desse amor, tá ligado? Então, preservar a história do nosso amor, dos nossos sentimentos, para além desses sentimentos impostos pela colonização — que é o sentimento de morte, que é o sentimento de exploração que o colono-capitalismo vai pregar pra gente, sabe?

Para você funcionar dentro desse sistema capitalista, você tem que colonizar, roubar, dominar e viver sob uma lógica do domínio.

Então, quando eu amasso o cinema, é justamente de amassar essa lógica do cinema que sempre foi feito, com as mesmas estruturas de equipe, as mesmas estruturas de financiamento, tá ligado?

Como eu falei, das pessoas que tinham direito ao hobby, que tinham direito ao lazer, que tinham direito ao recurso, tá ligado? Então, a forma como eu produzo, como eu escolho fazer com minhas companheiras e meus companheiros, vai ditar a forma que o filme vai ter.

E uma coisa que eu aprendi, de novo, com muito trabalho, foi justamente que o que tem de valor na minha linguagem, de construir uma linguagem, é justamente não esconder o resultado de como eu faço. Sabe?

Porque ainda hoje, no cinema, se tem uma lógica do valor de produção. Então, se o filme parece caro, ele é um filme, ele ganha um carimbo de filme. Então, se o filme tem erros, se tem falhas técnicas, ele já ganha um carimbo de amador ou de outra coisa.

E eu venho fazendo esse bagulho há 15 anos. Então, se 15 anos atrás alguém falava “essa câmera tá tremida demais”, falava pra nós, né? Nunca ninguém falou pra um cineasta do Cinema Novo isso, por exemplo, ou pra um cineasta da Nouvelle Vague francesa.

Porque também é isso: todas essas críticas têm raça, classe, gênero. Então, assim, é sempre muito bem estabelecida.

Então, quando a gente pensa em amassar o cinema, é justamente a gente não esconder a forma como a gente é, tá ligado?

E no final das contas, eu moro na mesma favela, eu moro na mesma quebrada, porque eu acho as minhas pessoas bonitas, eu acho minhas pessoas inteligentes. Eu me alimento da intelectualidade da minha comunidade, tá ligado?

Estudo — e quando eu falo trabalho e estudo, é justamente isso: eu estudo isso pra que o resultado não esconda isso, tá ligado?

Porque eu acho, quando eu falo que a gente tem que construir uma outra imagem de Brasil, quando esse Brasil do cinema de classe média alta, burguês, foi apresentado ao mundo, é justamente isso: não esconder quem eu sou, não esconder quem nós é, não esconder a forma que nós produz, e lidar com as nossas questões de formas frontais, tá ligado?

Para além, inclusive, da moda do momento, da representatividade, de não sei o quê, tá ligado? Porque essas coisas passam.

Hoje vai ser muito da hora alguém financiar um filme de um cara da favela. Amanhã já não vai ser mais, tá ligado?

Nesses 15 anos de carreira, eu já passei por ciclos em que era muito bonito você botar no edital que você era de quebrada, depois não ficou tão bonito, depois ficou bonito de novo, tá ligado?

Mas, ao mesmo tempo, a luta de tentar o recurso, a luta de tentar ser incluído — enquanto o que eu faço é relevante, o que eu faço merece dinheiro, eu e as pessoas que trabalham comigo merecem dinheiro — ainda é uma batalha constante nos editais.

Sempre falo que os editais brasileiros são continuidade da violência histórica do país, porque é um país que mata nossas pessoas, e que lá atrás, desde a escravização dos povos indígenas, das pessoas pretas, documentava isso. Porque a colonização e o capitalismo são sádicos nesse sentido. Então, você tem documentação disso, você tem documentação histórica disso, né?

Então, os editais, pra mim, são uma continuidade. Quando um edital fala que vai dar 10 milhões pra tal cineasta, tal produtora, e vai dar 100 mil — que seja 1 milhão — pra produtora de favela, pras pessoas pretas, pras travestis, pras pessoas indígenas, tá aí mais um documento que a gente vai olhar daqui a uns anos e vai falar: “Olha aqui como a continuidade da exploração ainda continua.”

Porque a gente, mesmo pro documento oficial do Estado, não está em pé de igualdade. O Estado nunca colocou a gente num lugar de igualdade.

Então tem essa luta paralela ao fazer do filme, que é de estar num lugar de equidade, tá ligado? Mas tem essa feitura desse cinema amassado, mostrando que esse cinema representa o que é meu povo, representa o que é a favela, tá ligado? De uma forma não colonial, de uma forma não óbvia.

Cine Ninja: O seu filme não é apenas um filme do presente da sua comunidade, mas é um filme que toca numa construção histórica. A gente escuta os seus personagens falarem sobre essa casa que eles querem construir no futuro e pra quem você quer construir essa casa no futuro. Eles também colocam a questão de como seria também se essas ferramentas que vocês usam hoje no cinema estivessem nas mãos dos seus avós, dos seus bisavós…

Lincoln Péricles (LK): De novo, como o Brown fala: “Cada favelado é um universo em crise”. Então que esses universos em crise estão apresentados e que outros universos em crises, como eu, como as pessoas que estão junto comigo, vão se identificar com isso e vão ter uma relação direta com isso, né? E, por exemplo, meus filmes sempre são muito bem aceitos na quebrada, assim, muito! E são filmes às vezes muito experimentais, no sentido, pra gente pôr esse nome que o cinema dá, e é muito bem aceito, mano. É muito bem aceito! Os festivais vêm depois pra mim.

Os festivais vieram depois na minha carreira. A minha exibição aqui no FID Marselha vem depois de cinco exibições dentro da minha favela. Tá ligado? Então assim, tipo, é primeiro a minha comunidade e aí primeiro a gente e se as pessoas se interessarem pelo que a gente é de fato, elas vão ter uma relação com o que a gente faz. Se não se interessar, como muita gente não se interessa e simplesmente ignora o tipo de cinema que a gente faz, mesmo sendo impossível ignorar o cinema feito pelas pessoas LGBTQIA+, pelas pessoas pretas, pelas pessoas indígenas no Brasil. Eu acho que é impossível se ignorar a força desse cinema, mas, enfim, as pessoas ainda ignoram e é uma escolha.

Para mim hoje é isso, você está escolhendo não olhar para os filmes feitos por uma travesti, um filme feito por uma pessoa de favela. É uma escolha que você está fazendo e é uma escolha política, tá ligado? E a escolha política que eu faço é de olhar para isso, para o que eu estou fazendo, meus companheiros e companheiras estão fazendo, mas para outras pessoas também que estão fazendo e engrossando esse caldo, assim, né?

Porque é isso, a gente é a última instância ali do fascismo que é a morte, né? Mas essa morte física, como fala na música do final do filme, do Matheus Fazeno Rock, é isso, é a morte colonial, é a morte pelo esquecimento. Então, quando, por exemplo, os personagens do filme vão falar: “Imagine um filme feito pela nossa bisavó”, tá ligado? Quando eles falam isso, eles estão imaginando. É uma memória que tentou ser apagada dos documentos, mas a gente imagina. Então, se é assim que a gente vai criar novos documentos, imaginando e fabulando, é assim que a gente vai fazer e faz! Então, a gente imagina futuros possíveis, a gente imagina passados possíveis e presentes possíveis também.

Cine Ninja: Eu também estou muito curiosa sobre como é que está sendo essa sua relação dessa construção com esse território que você chegou aqui na França. O que você está sentindo mesmo, assim, sobre ter chegado aqui, sobre estar compreendendo o que é esse espaço, e tudo que esse espaço tem também de resistência, que não é apenas essa relação com o povo europeu. Porque às vezes a gente tem essa visão do lado de lá, né?

Lincoln Péricles (LK): Qual é a brisa? Dois meses atrás eu tava em Dandora, uma favela em Nairóbi, no Quênia. Agora eu tô em Marselha. Algumas coisas muito diretas que eu descobri sobre a França é que eles estão 50 anos atrasados. Quando eu digo atraso, não é nem um atraso temporal, é um atraso mesmo de… Um atraso prático de como você lida com as coisas, de como você lida com o bem-estar das pessoas que estão dentro do seu território, né?

Então, a coisa mais interessante que tem na França é a imigração, são os imigrantes. E é a coisa que a Europa, como um todo, mais ignora e tá temendo, né? Porque toda a pobreza que eles geraram no mundo, todo o roubo que a colonização gerou no mundo… Eles estão com medo de que isso afete eles, tá ligado? E o medo vem a partir da nossa cara, da nossa presença. E a França até hoje tem colônias, né? Eles só não chamam por esse nome, mas eles têm.

Então, eu tenho uma amiga, Cintia Guedes, que ela fala assim: “A coisa mais bonita que um homem branco pode sentir por mim é medo”. E aí eu acho isso interessante, porque esse medo também é muito sintomático de algumas coisas da qual a gente tá construindo. Então, pra mim, praticamente, estar dentro do território francês é parte de uma organização política que busca, primeiro, solidariedade internacional, que busca organização internacional, tá ligado?

Como uma pessoa de esquerda, eu acredito plenamente que as coisas não estão dentro só do nosso território. A gente precisa proteger o nosso território e a nossa autonomia, mas enquanto outros territórios e outras pessoas não tiverem sua autonomia e não tiverem também integrados à luta com a nossa luta pra gente ser um corpo maior, um corpo mais presente, não adianta nada.

Então, eu não tô buscando só o meu bem-estar, eu não venho pra França pra buscar o meu bem-estar. Tudo que eu adquiro, seja de conhecimento ou de recurso, eu redistribuo. Isso num nível pessoal. Só que num nível coletivo, o que eu venho fazer aqui é justamente construir alianças e conhecer pessoas da classe trabalhadora, pessoas que estão aqui dentro desse território, construindo o que mais de interessante tem dentro desse território, de intelectualidade e de produção artística, e justamente pra entender mais o universo.

Quando eu tava em Dandora, como eu mencionei, eu vejo um movimento social latente, eu vejo uma produção de cinema dentro de uma favela, que também tem muito a ver com a produção de cinema que a gente faz dentro da nossa favela. Tanto que a gente está em pós-produção de um filme que eu co-produzi numa outra favela no Quênia, uma favela chamada Mathare, e aqui na França não é diferente. Minhas grandes amigas aqui é uma pessoa de Comorros, uma cineasta de Comorros e uma outra cineasta de Cabo Verde, com quem eu estou fazendo um longa agora.

Cine Ninja: Eu também gostaria de entender um pouco de como está sendo a sua construção em Saint-Denis…

Lincoln Péricles (LK): Justamente eu comecei a fazer um filme ali na 93, que é na periferia de Paris, em Saint-Denis, e comecei a fazer um filme lá que tem muito a ver com o filme que eu faço na minha quebrada. Parte do filme vai ser gravada na minha quebrada. Mas é um filme que eu mesmo atuo e eu mesmo dirijo. As pessoas que participam comigo têm um modo de fazer muito parecido com o modo de fazer que eu sempre fiz.

Inclusive, mês que vem, a Priscila Nascimento, que eu já mencionei, vai estar comigo na França. Então, de alguma forma, a gente está conseguindo encontrar pessoas como nós e, de novo, para ser bem direto: é uma construção política, é uma construção estratégica.

Se os fundos europeus, os festivais europeus ou a arte biscoito fino europeia vão olhar para o que eu faço com bons olhos ou não, eu estou pouco me importando com isso. Inclusive, aqui no FID, eu encontrei companheiros que já não separam a estética da política. Então, a ligação não é pelo lobby, e sim pela crença de mundo. O festival está sendo muito interessante nesse sentido.

Se as pessoas vão ou não criar esse discurso exótico, esse exotismo sobre mim, não me interessa, porque eu estou blindado. Estou protegido pelos meus ancestrais, pelas pessoas lá da quebrada que torcem por mim, estou protegido pela minha espiritualidade e estou construindo com pessoas que têm as mesmas questões e lutas que eu tenho, tá ligado?

Agora, eu acho que é importante mencionar que eu só tive acesso a esse território por causa de políticas afirmativas. Então foi uma política afirmativa da Spcine que me proporcionou estar no festival de Clermont-Ferrand ano passado. Lá, eu conheci uma cineasta do Sudão que me levou para o Sudão, me levou para o Quênia, me levou para a França de novo, porque ela mora em Paris.

Então, são com essas pessoas que eu estou construindo, né? Graças a uma política afirmativa. Porque é isso: a gente sabe que viajar, sair para fora do Brasil, é caro. Mesmo se o teu trabalho passa em grandes festivais, é um investimento que eu não consigo pagar para ir representar. Sair para a Europa é mais caro ainda. Sair para os Estados Unidos é mais caro ainda, porque tem um valor financeiro e tem um peso histórico também, tá ligado?

Pra mim, tem uma construção política e estratégica que é direta, é consciente, e ao mesmo tempo é uma coisa que eu não preciso para viver. Eu posso voltar para a minha favela e, se eu não tiver mais nada disso, se eu nunca mais conseguir viajar para fora do meu país, vou ser abraçado pelas minhas pessoas como sou.

Nós construímos algo sólido e vamos continuar construindo o tipo de cinema que a gente faz, tá ligado? Mas, se a gente encontrar pares, encontrar solidariedade internacional, vai ajudar muito os nossos filmes, os nossos próximos projetos — e é isso que eu estou fazendo aqui e que eu estou buscando também.