O general Golbery do Couto e Silva era um sujeito, além de inteligente, muito esperto. Não bastasse figurar como um dos principais teóricos da “doutrina de segurança nacional”, cerne do fundamento conceitual e filosófico do Regime Militar de 1964, também foi, junto com o ex-presidente Gal. Ernesto Geisel e outros, um dos responsáveis pela concepção de abertura “lenta, gradual e segura”, acompanhada de anistia “ampla, geral e irrestrita”.

Vê-se que, de bobo, o Gal. Golbery não tinha nada. Fazendo a correta leitura da conjuntura internacional percebeu que, ou promovia a abertura ou a Ditadura Militar brasileira poderia ser derrubada de um modo mais traumático, com conflitos sérios e, quiçá, derramamento de sangue. Tratou, portanto, de pactuar com os grandes líderes do movimento pela redemocratização do país um generoso salvo conduto para a turma da caserna.

Apesar das garantias decorrentes da anistia, aqueles que constituíam a chamada “linha-dura” do regime ou que estavam “na vez” para assumir o poder e foram preteridos se transformaram em suas eternas viúvas. O Gal. Sylvio Frota, chefe do Estado-Maior do Exército no governo Geisel, depois exonerado pelo presidente, se tornou uma delas. Com ele, o seu ajudante-de-ordens, então capitão e hoje Gal. Augusto Heleno Ribeiro, ministro de Estado-Chefe do gabinete de Segurança Institucional (GSI) da presidência da República do governo de Jair Bolsonaro.

Heleno tem uma biografia controvertida. Na condição de comandante das tropas militares que integravam a missão de paz da ONU no Haiti, foi o responsável pela morte de, aproximadamente, 70 civis inocentes, em uma ação militar que visava prender o líder combatente Emmanuel Wilmer (popularmente conhecido como Dread Wilme), considerado um criminoso perigoso aos olhos dos coordenadores da missão.

Na ocasião, 6 se julho de 2005, segundo a revista Exame, “ao longo de uma luta armada de sete horas, as tropas dispararam mais de 22 mil balas em Cité Soleil, um bairro pobre da capital haitiana, Porto Príncipe. Seu alvo, Dread Wilme, foi morto.” Contudo, dezenas de civis também morreram no fogo cruzado, muitos deles mulheres e crianças.

Consta que, seguindo recomendações da ONU, o ex-presidente Lula afastou o militar do comando das tropas nomeando, para o seu lugar, o também Gal. Urano Teixeira da Matta Bacellar. É daí que adviria o ódio de Heleno para com Lula, que o faz babar todas as vezes em que pronuncia o nome do ex-presidente.

Em recente e absurda “nota à Nação brasileira”, publicada na sexta-feira, 21/05, Heleno protesta, em tom ameaçador, contra medida judicial adotada no âmbito do inquérito que visa apurar a suposta tentativa de interferência política do presidente da República na Polícia Federal, em tramitação perante o STF, demonstrando não só desapreço pela democracia, mas completo desrespeito para com o seu respectivo sistema de freios e contrapesos.

Ódio parecido nutre o vice-presidente da República, Gal. Hamilton Mourão, pela ex-presidente Dilma Roussef. Consta que o general, ocupando então o posto máximo do Comando Militar do Sul (CMS), teria proferido declarações desairosas e nada edificantes em desfavor da ex-presidente, em palestras que ministrava em Clubes do Exército ao redor do país. Ao assim agir, teria ele, em tese, conspirado contra a Comandante-em-Chefe das Forças Armadas. Por esse motivo, Mourão teria sido afastado de seu posto. Nasceria daí o ódio e, com ele, o seu engajamento político e sua filiação partidária. O escamoso artigo do vice-presidente, publicado no jornal O Estado de São Paulo na quarta-feira, dia 03/06, é só mais um exemplo de como pensa a cabeça distorcida do oficial e seus pares.

Pois bem. Em outros países latino-americanos que superaram suas sangrentas ditaduras – que torturaram, mataram e desapareceram com aqueles que delas discordavam – houve consequências duras aos que abusaram do poder, com abertura de processos judiciais, julgamentos, condenações e prisões aos que praticaram, dentre outros delitos, graves crimes contra a humanidade. No Brasil, o eterno país do jeitinho, foi diferente. Houve uma condescendência sem precedentes para com militares criminosos. Não que todos tenham sido. Mas, houve muitos. Alguns, com destacadas funções no atual governo, figuram como seus admiradores.

É justamente o binômio de abertura “lenta, gradual e segura” com anistia “ampla, geral e irrestrita”, formulado por Couto e Silva, que está no cerne do totalitarismo bolsonarista. É o que faz com que figuras como Gal. Heleno, Gal. Villas-Boas e outros se arvorem de ameaçar, com notas e tweets, a democracia. É a certeza da impunidade que os encoraja, que os motiva. A recente declaração, datada de 11/06, do general da ativa Luiz Eduardo Ramos é outra prova disso. A estapafúrdia nota assinada pelo ministro da Defesa, vice-presidente e presidente da República, em 12/06, são outro sinal.

Se houvesse tido, na época correta, julgamento para os crimes praticados na ditadura e, quem sabe, punição aos autores dos delitos, a essas alturas os criminosos já teriam pago suas penas e estariam gozando de um ostracismo que lhes deixaria viver, com algum conforto, seus últimos dias de velhice na reserva. Mas, não. E são justamente aqueles que constituem o rebotalho da ditadura que ascenderam e hoje ocupam o poder.

O inquérito das fake news, que apura a existência e atuação do tal “Gabinete do Ódio”, organização criminosa financiada com recursos públicos e privados para caluniar, injuriar e difamar adversários políticos, promovendo execrações públicas, linchamentos morais e destruição de biografias; o inquérito que apura a suposta tentativa de interferência política de Bolsonaro na Polícia Federal, desejando transformá-la de polícia judiciária em polícia política, a proteger e resguardar os interesses particulares, seus e de seus familiares; e os atos contra o governo, contra o fascismo, o racismo e em defesa da democracia, ocorridos em diversas cidades no domingo, 31/05, são exemplos atuais que demonstram que os arroubos de autoritarismo e os flertes com o totalitarismo – demonstrações claras de que o real desejo de Bolsonaro é transformar o regime democrático em um governo de exceção – podem estar com os dias contados. Tomara.

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