A liberdade de pensamento é direito fundamental assegurado na Constituição Federal, em seu art. 5°, IV. Ela abrange duas dimensões: a liberdade de consciência (o pensamento em si) e a liberdade de exteriorização do pensamento (o ato de torná-lo público).

A primeira dimensão abrange a liberdade de crença (para temas religiosos, espirituais ou transcendentais) e a liberdade de consciência em sentido estrito (para assuntos não religiosos). Já a segunda dimensão compreende a liberdade de culto (CF, art. 5º, VI), a liberdade de cátedra (CF, art. 206, II), a liberdade de informação jornalística (CF, art. 220 e §§), e a liberdade científica e artística (CF, art. 5º, IX), que abrange também a atividade intelectual e de comunicação, independente de censura ou licença (CF, art. 5º, V e IX).

É a essa liberdade de exteriorização do pensamento que se dá o nome de liberdade de expressão, que pode ser individual e coletiva (CF, art. 5º, XVI, XVII e XXI). Esta última abrange o direito de reunião (em espaço aberto, fechado ou em formato de passeata) e o direito de associação. O direito de reunião, que compreende o protesto pacífico deve, obrigatoriamente, ser exercido sem armas e pressupõe a existência de fins lícitos e aviso prévio às autoridades competentes.

A primeira dimensão, a do pensamento em si, tem caráter indevassável e absoluto: o pensamento que ainda não foi manifestado não está sujeito a nenhum tipo de regra, freio ou limite jurídico. Já a segunda dimensão, por sua vez, não é absoluta. Tanto é que a própria Constituição Federal (CF/1988), quando trata do direito à privacidade e respectiva tutela da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem (CF, art. 5º, X), prevê a possibilidade de responsabilização para aqueles que extrapolarem os limites de sua liberdade de expressão, assegurando o direito à indenização aos prejudicados pelo dano material ou moral decorrente de sua violação. Por essas mesmas razões que a CF/1988 garante a liberdade de pensamento, mas,  veda o anonimato: para que as pessoas, devidamente identificadas, possam ser responsabilizadas por eventuais excessos cometidos no exercício de tal liberdade.

Portanto, a liberdade de expressão, individual ou coletiva não é absoluta e nem ilimitada. E  combater a desinformação não é censura. A livre manifestação do pensamento não alberga direito de produzir e difundir fake news, de caluniar, injuriar, difamar, ameaçar e, muito menos, de atentar contra a própria liberdade de expressão, contra a democracia ou contra o Estado de Direito.

É em nome do respeito aos limites da liberdade de expressão que se dá a necessidade de aprovação do PL 2630, de combate às fake news. Há mil e uma razões práticas para isso. Um exemplo é o uso de “imageboards” – fóruns virtuais de debates baseados em imagens e hospedados em endereços com a denominação “chan” – como comunidades de ódio formadas por internautas anônimos.

Esse tipo de fórum, virtual e anônimo, se converteu em ambiente fértil para produção de fake news, teorias da conspiração e discursos de ódio, depois difundidas em grupos de WhatsApp, Telegram, em posts das demais redes sociais e até mesmo em programas de TV aberta, além de ameaças violentas aqueles que ousam desvelar ao público os bastidores do que se debate em anonimato.

É nesse tipo de ambiente virtual, sombrio e pantanoso, verdadeiro esgoto da deep web, em que bolsonaristas vêm se acoitando há anos para elaborar suas narrativas antivax e contra as urnas eletrônicas, bem como para planejar e executar atos como os acampamentos ilícitos em frente aos quartéis, o vandalismo e a baderna do dia 12/12, a tentativa de atentado terrorista ao Aeroporto de Brasília, a tentativa de golpe de Estado do dia 08/01, os recentes atentados contra as Escolas Públicas e tantos outros crimes.

As resistências à aprovação do PL 2630 vêm, portanto, de forças políticas expressivas e grupos econômicos poderosos. Como a mentira, as teorias da conspiração e os discursos de ódio são os conteúdos que mais geram engajamento nas redes, restringi-los ou lhes colocar cobro será o fim da picada para as big-techs do capitalismo tecnoglobal que têm, nessa bagaceira, uma fonte quase inesgotável de seus lucros, além de uma dura medida contra políticos que se alimentam de tais extremismos para engajar seguidores e, via de consequência, conquistar eleitores.

A internet não pode ser território sem lei ou terra de ninguém. Impedir a propagação sistemática e proposital de mentiras que causam danos à sociedade é, mais do que uma necessidade jurídica, um dever cívico.

Não se trata, porém, do alegado receio de censura. O real motivo para a oferta de resistência à aprovação do PL 2630 é que, sem a mentira como produto na prateleira do mercado digital da pós-verdade, as big-techs vão perder muito dinheiro. E os bolsonaristas perderão curtidas, seguidores e eleitores.

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