Por Lohuama Alves

“Como eu lido com as transições de linguagens? Não lido, só vivo. (risos) Eu sou o próprio combo promocional do multiartista”. A frase, dita por Phellipe Azevedo entre uma pausa e outra para respirar fundo, resume o pulso que atravessa sua arte. Ator, diretor, produtor e um dos criadores da marca Recusa, ele faz do corpo um manifesto e do cinema, um território de disputa simbólica.

Azevedo não é um nome novo na cena cultural brasileira — mas é daqueles que se movem como correnteza, costurando teatro, moda, audiovisual e militância num gesto contínuo. Dos palcos cariocas às séries da Netflix, como DNA do Crime e Os Donos do Jogo, o artista tem revelado uma coerência rara: não importa o palco, a missão segue a mesma — reencantar o mundo a partir das margens.

Com uma trajetória que começou ainda na adolescência, ele atravessa as telas carregando histórias de um povo, de um território e de uma luta que não se apaga. Em entrevista ao Cine Ninja, o ator falou sobre como a arte se apresentou não só como ofício, mas como caminho de afirmação política e cultural.

O menino do subúrbio que virou griô das telas

Criado no Conjunto de Favelas do Caju, Phellipe descobriu na arte uma forma de sobrevivência e potência. A juventude foi marcada por experiências teatrais comunitárias e coletivos culturais de base, que mais tarde o impulsionaram a estudar e circular profissionalmente pelos grandes centros.

“O que me segura nessa trajetória foi minha família, sem ela nada disso seria possível. Sempre tive muito apoio, principalmente da minha tia Rute, que cuidou de toda a minha formação educacional. A dificuldade de se estabelecer enquanto artista, principalmente para quem vem da periferia e da favela, é muito grande. Mas desde criança, dona Lúcia Azevedo, vulgo minha mãe, falava que eu era teimoso. E continuei nessa. Sou extremamente apaixonado pelo audiovisual. Se quer me deixar feliz, me coloca no set de filmagem fazendo qualquer função. Ano passado me formei no mestrado com a dissertação ‘A laje como prática de set e palco suspenso: a construção de um audiovisual nas lajes da Manilha – Caju’, onde investiguei as lajes da Manilha como set de filmagem. Em paralelo, a pesquisa ganhou o edital do Sesc e conseguimos gravar meu primeiro roteiro que escrevi sozinho, o curta O Retorno de Ana, que dirijo com a Tainá Bevilacqua assinando a codireção. O filme foi todo rodado na Zona Portuária e, principalmente, no Caju, com as minhas vizinhas Marília e Mariana Ferreira, que assinam autoria do filme junto comigo. Tem uma fala da bell hooks no livro Cinema Vivido que diz: ‘O cinema produz magia. Modifica as coisas. Pega a realidade e transforma em algo diferente bem diante dos nossos olhos’.”

Seu trabalho ganhou visibilidade nacional com a série DNA do Crime, da Netflix. “É difícil não começar pelos meus projetos atuais, né? A segunda temporada de DNA do Crime é simplesmente absurda! Viram o trailer? Quando assisti pela primeira vez, fiquei arrepiado e com um sorriso bobo no rosto por um bom tempo. A equipe de DNA é fantástica! Desde que saiu o trailer, não consigo parar de assistir. Quando começa a tocar J Balvin e vem a logo da Netflix, meu coração dispara. Estou num trailer da Netflix com J Balvin tocando, tem noção de como isso é muito chique? Teve um dia que cheguei para ensaiar, olhei pro lado e… era um time brilhante de atores que eu já admirava há tempos, gente que eu sempre achei incrível. E agora estava ali, trabalhando junto. DNA é um projeto internacional, sabe? (risos). Acho que a galera vai pirar com o roteiro da 2ª temporada — só tomando muito Rivotril pra segurar essa pedrada. Agora estou fazendo minha primeira novela. Entrei na trama com o personagem Cabo Adriano, que é parceiro de trabalho na PM de Marlon (Humberto Morais), que, aliás, conheci no set de DNA. E agora somos duplinha na novela Dona de Mim.”

Recusa: vestir é um ato político

Outro desdobramento potente de sua trajetória é a Recusa, que vai além da estética: é sobre afirmação de identidade, sobre o direito de existir e se apresentar com orgulho.

Ao lado da esposa, a estilista Renata Alves — cria do Morro da Providência e quarta geração de costureiras da família — Phellipe fundou a Recusa, uma marca de roupas agênero que carrega as histórias do casal, sua relação com o território e com o fazer artesanal. “Nossa missão é produzir moda como uma ação direta de expressão na sociedade, valorizando os profissionais de toda a cadeia produtiva da roupa, principalmente as costureiras. A Renata é a quarta geração de costureiras da sua família; esse tema é de extrema importância na sua trajetória. Portanto, o nome Recusa vem desse primeiro impulso de tentar refletir sobre essas questões.”

A Recusa, que já vestiu nomes como Maeve Jinkings e Enrique Diaz, também está presente em produções como Ó Paí, Ó 2 e o premiado Kasa Branca, de Luciano Vidigal. Em 2023, a marca concretizou um grande sonho: a criação do projeto ZEZABEL, uma escola livre de moda voltada para a formação de mulheres negras e faveladas na cadeia produtiva do setor.

“No momento estamos trabalhando no planejamento da nova coleção. Estamos projetando uma nova Recusa, que já está vindo por aí. Posso dizer que no segundo semestre teremos novidades. Estamos ansiosos demais para compartilhar com vocês as novas modelagens e looks. Mas, enquanto a nova coleção não sai, seguimos com o ateliê aberto, onde recebemos os clientes para encomendas a partir de nossas modelagens.”

Renata Alves e Phellipe Azevedo. Foto: Saulo Rodrigues
Cena do filme “Grande Sertão”. Foto: Helena Barreto

Planos futuros

Sobre o futuro, Phellipe não titubeia: quer continuar fazendo obras que tensionem o olhar colonial e ampliem o repertório estético-político do audiovisual brasileiro. Sonha com produções feitas nas quebradas, com atores não profissionais, com roteiros escritos em roda.

“Torço muito para que meu personagem Adriano vá até o final da novela — quem sabe até ganhando um final surpresa? (risos). Mas minha cabeça já está também nas próximas temporadas de DNA do Crime e Os Donos do Jogo. Em breve lançaremos o documentário Bando A apresenta o lado B do Grande Sertão. Paralelamente, estou na reta final do curta Arame na Laje, que dirijo em parceria com JV Santos — uma junção do Coletivo Arame Farpado com o Cafuné na Laje. Sigo também na batalha para finalizar meu longa-metragem O Retorno de Ana, buscando coprodução com minha produtora Manilha Filmes. E estou desenvolvendo um roteiro com meu amigo Ivan Nascimento, baseado numa história real vivida por sua família. Nesse, vou atuar como antagonista — um personagem esquisito que se muda para o lado da casa deles… é um suspense psicológico inimaginável! Espero que o povo dê muita gargalhada com o documentário, porque a gente se divertiu muito gravando. E sobre DNA, eu nem sei mais o que responder (risos). Mas, falando sério, espero que o público receba esses trabalhos como provocações necessárias. Tanto o documentário quanto DNA do Crime são espelhos da nossa sociedade para nos questionarmos”, conta.

“No documentário, queremos que as pessoas vejam o imenso trabalho que temos e que normalmente fica de fora do filme: o trabalho invisível, as histórias não contadas, a potência artística que sustenta grandes produções, mas raramente é celebrada. Se o espectador sair do cinema pensando ‘como não enxerguei isso antes?’, teremos cumprido nosso papel. Já em DNA do Crime, a expectativa é diferente: queremos o desconforto. A série não é entretenimento puro — é um debate sobre violência, necropolítica, poder e desigualdade disfarçado de thriller policial. Quem é o herói de fato nessa história? Meu personagem chega como uma peça nesse tabuleiro, e torço para que o público ame e se identifique com ele”, continua.

O artista como agente de transformação

“Como eu lido com as transições de linguagens? Não lido, só vivo. (risos) Eu sou o próprio combo promocional do multiartista. É difícil explicar, porque venho de uma geração em que nossos pais falavam para a gente escolher uma coisa só. Mas eu sempre quis muita coisa. Sagitariano com ascendente em Áries, lua em Leão e Mercúrio em Sagitário: fogo puro. Dizem que o fogo está associado ao potencial de entusiasmo, motivação e criatividade. Logo, sou tipo o ‘Uber’ das artes cênicas (risos). Ah, o teatro é toda a minha formação. Foi ali que aprendi a ser produtor, empreendedor, educador e diretor. No teatro é muito, mas muito trabalho para pouco dinheiro — pelo menos nos projetos que participei. Mas confesso que tenho uma saudade de subir no palco como ator. Espero resolver esse desejo até 2026. Tive uma grata surpresa com o convite da Inepta Cia para dirigir seu novo espetáculo, intitulado Entrega, a partir da linguagem da palhaçaria, para refletir sobre os impactos da precarização do trabalho no Brasil atual, com foco nos entregadores de comida por aplicativo. Esse projeto começa no ano que vem. Sobre a TV, é meu primeiro trabalho com uma participação maior. Meu personagem entra no meio da trama. É tipo entrar no ensino médio no segundo semestre: todo mundo já se conhece há muito tempo, e você está chegando, ainda perdido na hora do recreio (risos). Mas estou entendendo o jogo aos poucos. O que me fascina é essa dança entre o que está no roteiro e o que a gente cria no set”, conclui.

A trajetória de Phellipe Azevedo é marcada por escolhas firmes, escuta profunda e um desejo inegociável de transformação. Ele acredita que a arte pode — e deve — ser um instrumento de mudança social.

Em um cenário de visibilidade crescente para artistas nas telas, Phellipe Azevedo constrói sua caminhada como quem finca os pés no chão para abrir caminhos com firmeza. Com um olhar que não desvia de suas raízes, ele leva a arte para além da performance: como gesto político, como ferramenta de transformação e como forma de existir no mundo com inteireza.