Por Nara Almeida

Cineasta e mulher travesti, Marina Bonifácio é um dos nomes mais potentes do cinema alagoano. Com 24 anos, ela é fundadora do Ateliê Xica Manicongo, iniciativa que abre caminhos no audiovisual para pessoas trans e travestis. Seu cinema evoca pertencimento e aposta na força da coletividade como principal forma de transformar sonhos em possibilidades reais.

Marina sempre teve uma paixão pelo cinema, mas foi no ensino médio, por meio da professora de Sociologia, que conheceu o curso Ateliê Sesc de Cinema e enxergou a possibilidade de se aprofundar no audiovisual. Entrou para a turma de 2018 e aprendeu sobre os fundamentos da linguagem cinematográfica. Ao fim do curso, realizou seu primeiro filme junto à turma. “Foi incrível, me abriu um horizonte muito vasto de possibilidades”, lembra.

Desde então, não parou. Buscando de todas as formas expandir seu conhecimento, participou de cursos e oficinas de cinema. Como Alagoas não oferece cursos de graduação na área, foram as formações livres que moldaram Marina como profissional do audiovisual.

Em 2022, começou a trabalhar como curadora de festivais e mostras de cinema, o que foi essencial para sua formação. Ver filmes e traçar as narrativas que compõem a programação contribuiu para a expansão do seu olhar artístico. E, logo depois, em 2023, iniciou sua trajetória como assistente de direção, atuando na produção de dez curtas e quatro longas-metragens.

Marina fez parte do Júri Jovem da Mostra de Cinema de Tiradentes em 2024, um dos festivais mais importantes do Brasil. Sua participação foi um marco na carreira: “Minha experiência com o Júri Jovem foi divisora de águas. Eu acho que saí outra de lá, me fez enxergar de outra maneira o cinema contemporâneo brasileiro. Creio que foi muito importante também a minha presença enquanto uma pensadora travesti”, pontuou.

Sempre refletindo sobre a presença de pessoas trans na criação audiovisual, Marina e sua amiga Samantha de Araújo idealizaram juntas o Ateliê Xica Manicongo: um espaço voltado à formação cinematográfica de pessoas trans.

A iniciativa é uma realização independente de sua produtora, a Maremoto Filmes, em parceria com o Sesc e a Escola Técnica de Artes de Alagoas (ETA). Para além de um curso de cinema, o ateliê é um espaço seguro onde se pode discutir e fazer cinema a partir de vivências próprias e contar suas histórias com autonomia.

Samantha relembra como foi encantador ver o projeto, que surgiu de uma conversa na praça, ganhar vida: “Sem dúvidas, um momento que me marcou desde a criação do projeto foi a primeira aula dada por Marina, em 12 de agosto de 2023, onde estava se concretizando o que tínhamos idealizado. Uma travesti estava ensinando outras travestis sobre cinema e aquilo foi muito lindo e significativo.”

Nomeado em homenagem à primeira travesti do Brasil, o Ateliê Xica Manicongo teve sua estreia em 2023 com um curso introdutório à linguagem audiovisual. Ao fim da formação, os alunos colocam em prática tudo o que aprenderam e produzem um curta-metragem, participando ativamente do processo criativo, do roteiro à direção.

A produção do primeiro Ateliê Xica Manicongo foi o curta Ainda Escuto o Céu Embaixo d’Água. Procurando escapar das narrativas trans reduzidas à tristeza e ao sofrimento, o filme aborda com positividade a vivência trans. A personagem principal tem dificuldade de sonhar, mas com o apoio das amigas consegue fazer com que isso aconteça.

Além das alunas como atrizes, o curta conta com a participação de duas “transcestrais” – mulheres trans que conseguiram ultrapassar a expectativa de vida estimada para uma pessoa trans no Brasil. “O filme gira em torno disso, dessa vontade de sonhar e dessa coletividade que leva outras a conseguirem. Então, esse encontro com as transcestrais também é uma forma de expressar que estamos sonhando, estamos alcançando outros espaços”, explica Marina.

O Ateliê Xica Manicongo é mais que um projeto – é uma experiência transgressora que atravessa as jornadas de quem participa: “Carrego a experiência em si comigo. Essa trajetória tem um espaço pessoal na minha carreira e no meu coração. O ateliê me materializa o senso de coletividade, de trocas saudáveis e de humanidade, à medida que continuamos a fazer um cinema que reposiciona as narrativas da transgeneridade aos nossos próprios olhares”, relata Céuva, 22 anos, aluna do primeiro Ateliê Xica Manicongo.

Ainda Escuto o Céu Embaixo d’Água e o Ateliê Xica Manicongo simbolizam um novo horizonte para o cinema em Alagoas. Mesmo com poucos recursos, o filme superou expectativas e participa de exibições em festivais e mostras de cinema pelo Brasil, mostrando que a arte com um propósito ultrapassa qualquer barreira.

“Para mim representa um marco chegarmos e alcançarmos esse lugar do cinema trans e travesti em Alagoas, porque até então existiam muitos filmes alagoanos sobre pessoas trans, feitos por pessoas cis, mas agora somos nós, pessoas trans, que estamos construindo nossas próprias narrativas”, relata Marina, realizada com o alcance do projeto.

A segunda edição do Ateliê Xica Manicongo está em andamento e segue ainda mais potente. Na abertura, foi exibido pela primeira vez o curta produzido na primeira edição do ateliê, Ainda Escuto o Céu Embaixo d’Água. “Assisti de mãos dadas com Marina nosso filme. Ali eu percebi o quanto nós temos potência — potência de criar e fazer nossa própria história, com as nossas próprias narrativas — e me senti orgulhosa do que fizemos”, afirma Samantha de Araújo.

Agora, com apoio da Lei Federal de Fomento Cultural Paulo Gustavo e Co-produção da Sambacaitá Produções, o projeto cresce cada vez mais, abrindo espaço para vozes trans ecoarem.

Além do Ateliê Xica Manicongo, Marina tem outras produções em andamento. Seu processo criativo parte de referências locais, “Gosto de pensar na cidade como um personagem para o meu cinema”, diz. Marina constrói narrativas com protagonistas trans, mas sem colocar a travestilidade como tema central. Recentemente, seu roteiro do curta-metragem Melô de Iga foi premiado no Curtalab, iniciativa da produtora Gatopardo recebeu apoio financeiro para ser realizado e está em pré-produção. A trama, ambientada na cena reggae da capital alagoana, acompanha o casal Raquel e Igor que enfrenta uma crise no relacionamento.

Outro projeto em destaque é o Guindastes, curta que está em fase de desenvolvimento, vencedor do Festival Visões Periféricas 2024, que aborda temas mais densos, como a exploração no trabalho.

Com previsão de lançamento para o próximo ano, Marina assina a produção do documentário Coração Perdido na Pista, dirigido pela cineasta, DJ e transformista Leviathan. O filme coloca em cena todo o espetáculo e estética vibrante da cultura clubber alagoana.

Se tem alguém que sabe o significado de potência, é Marina Bonifácio. Sua iniciativa inspira, transgride e muda trajetórias.