Por Alexandre Santini

Em um dia que entra para a história da cultura brasileira, 04 de junho de 2020,  6 anos depois da aprovação da Lei Cultura Viva no Senado Federal, foi aprovada a Lei de Emergência Cultural Aldir Blanc, com votações consagradoras na Câmara e no Senado,  que uniram governo e oposição. A Lei Aldir Blanc agora segue para a sanção presidencial, e cumprida esta etapa, virá outro grande desafio que é  a sua implementação nos estados e municípios.

O momento é de extrema polarização política no Brasil,  no contexto de uma “guerra cultural” que agride e desqualifica pessoas e instituições do universo das artes e da cultura. Há um desmonte em curso das estruturas de gestão das políticas culturais no país, como estamos assistindo desde a extinção do Ministério da Cultura, passando pelas gestões desastrosas da Secretaria Especial de Cultura e nomeações estapafúrdias para a direção de entidades como FUNARTE, IPHAN, Fundação Palmares, e agora a mais recente crise que pode significar o fim da Cinemateca Brasileira.  Neste contexto, agravado pela grave crise sanitária, econômica e social decorrente da pandemia do novo coronavírus, é aprovada a Lei Aldir Blanc, que significará o maior investimento já realizado de uma vez no setor cultural brasileiro em todos os tempos.  Uma pessoa que estivesse começando a acompanhar o assunto agora, analisando a conjuntura, poderia questionar: como isso foi possível? 

Foram semanas de mobilização em todo o país, dos mais diversos segmentos artísticos e culturais. Dezenas de web conferências pelos estados e municípios, reuniões virtuais onde centenas de pessoas participaram, se manifestaram, interagiram, se articularam, mobilizaram parlamentares dos seus estados, montaram listas e correntes para pressionar e depois agradecer o voto dado pela aprovação. Secretários municipais e estaduais de cultura, dos mais diferentes partidos e orientações ideológicas, entraram em campo, mobilizando prefeitos e governadores para o diálogo com as bancadas estaduais pela aprovação da Lei.  Parlamentares de partidos do centro e da direita, tradicionalmente mais discretos em relação às pautas da cultura, manifestaram apoio à Lei Aldir Blanc em suas redes sociais.  

 A Lei de Emergência Cultural Aldir Blanc superou barreiras ideológicas e fronteiras partidárias, mostrou que a defesa da cultura é uma pauta cívica, um interesse maior do país, e deve estar acima das disputas e das divergências. Foram fundamentais neste sentido, as relatorias da Deputada Federal Jandira Feghali (PCdoB-RJ) e do Senador Jaques Wagner (PT-BA), que com suas experiências e habilidades políticas, conseguiram realizar uma ausculta profunda das necessidades do setor cultural, consolidando um texto final sólido e amplo,  e articular internamente no parlamento um apoio praticamente unânime, inclusive da bancada do governo, que orientou e votou pela aprovação da Lei. 

Além desse caráter unitário e republicano da articulação nacional, um outro aspecto merece atenção: a pressão que funcionou sobre os parlamentares não foi a vinda “de cima”, da grande imprensa, dos principais meios de comunicação ou de artistas famosos e reconhecidos nacionalmente. Funcionou desta vez, a pressão dos “de baixo”, dos artistas locais, dos pequenos circos, das produtoras independentes, dos artistas de rua, das organizações culturais comunitárias, dos pontos de cultura, dos conselhos de cultura municipais e estaduais.  Foi essa força da cultura viva e presente na base da sociedade brasileira que venceu resistências, preconceitos e garantiu a ampla unidade política e social que possibilitou a aprovação desta Lei. 

Mas a aprovação da Lei dá início a um novo ciclo de mobilização: após garantir a sanção presidencial, a implementação da Lei Aldir Blanc nos estados e municípios vai exigir uma ação coordenada dos gestores de cultura estaduais e municipais, em um pacto de gestão compartilhada com a sociedade, em um processo de diálogo com participação permanente dos fazedores e fazedoras de cultura, artistas, produtores, pontos de cultura, redes, coletivos e movimentos culturais.

A Lei de Emergência Cultural Aldir Blanc é uma vitória consagradora dos trabalhadores e trabalhadoras da cultura da cultura do Brasil, uma conquista do povo brasileiro e uma reafirmação da nossa democracia. Em tempos tão difíceis, como estávamos precisando de uma vitória pública para a cultura brasileira, e eis que ela chegou! Mas é preciso compreender profundamente o que a Lei Aldir Blanc nos ensina, para além da Lei. “Não há abismo em que o Brasil caiba”, ecoando as palavras de Jorge Mautner. É preciso superar,  com amplitude e unidade, este abismo que se aprofunda no seio povo brasileiro, curar as feridas, costurar o nosso tecido social tão esgarçado pelo estica e puxa dos últimos anos. E a cultura e a arte, que costumam antecipar-se à realidade através da criatividade e da expressão sensível, talvez estejam acendendo uma luz, indicado um caminho, a ser seguido pelas nossas lideranças políticas e sociais. A cultura é a porta-bandeira da esperança! 

Alexandre Santini é gestor cultural, dramaturgo e escritor, Mestre em Cultura e Territorialidades pela UFF. Foi diretor de Cidadania e Diversidade Cultural do Ministério da Cultura entre 2015 e 2016. Atualmente dirige o Teatro Popular Oscar Niemeyer, em Niterói (RJ) e é autor do livro “Cultura Viva Comunitária: Políticas Culturais no Brasil e na América Latina”

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