Procissão a São Lázaro. Foto: Cleidiana Ramos

No próximo domingo, Salvador vai festejar São Lázaro. A homenagem ao protetor dos doentes, especialmente os que sofrem de doenças na pele foi uma das celebrações que analisei na minha tese de doutorado intitulada Festa de Verão em Salvador: um estudo antropológico a partir do acervo documental do jornal A Tarde. Festejado em uma igreja modesta na Federação, fora do circuito à beira da orla ou do centro antigo, o santo mantém devotos fiéis em meio a uma narrativa de amparo àqueles que ninguém deseja por perto: doentes e pobres, os leprosos do passado, habitantes dos não à toa chamados “lazaretos”. O mundo atual anda repleto destes.  Há duas semanas, o Brasil, mesmo que rapidamente, foi obrigado a olhar de frente o drama dos custodiados na Penitenciária Agrícola de Monte Cristo, situada em Boa Vista, Roraima, que tiveram as suas  peles e carnes devoradas pela mistura de doença e descaso.

O assunto já está quase esquecido nessa gangorra surrealista em que se debate o Brasil nas concretizações da “banalidade do mal”, apontada por Hannah Arendt. Noticiado em plataformas de mídias independentes, migrando depois para as comerciais, o caso não alcançou a mesma visibilidade de outras guerras de narrativas, afinal presidiário não é um segmento a quem se dedica a comoção em larga escala. A notícia já some no horizonte do horror que nos revela como uma sociedade sádica, virulenta e dura nos julgamentos apressados especialmente se for por trás do escudo de um smartphone no grande tribunal das redes digitais.  Mas, talvez, este culto a São Lázaro tenha algumas lições sobre empatia ao outro mesmo quando ele é  jogado aos níveis mais baixos de sua própria humanidade com esta mutilada simbolicamente ou fisicamente.

O culto a São Lázaro na capital baiana  é mais antigo que o dedicado ao famoso Nosso Senhor do Bonfim. A igreja, hoje um santuário porque é local de romaria, tem como documento mais antigo uma referência de 1737, de acordo com o livro Santuário de São Lázaro, escrito pelo padre Marcos PIatek, que foi reitor do templo.

No entorno desta igreja, no casarão onde hoje está instalada a Fundação do Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia (Fapesb), funcionou um “lazareto”, um termo muito usado para os abrigos que recolhem doentes abandonados.  Em 1755, de acordo com o livro, a Câmara de Salvador pediu à coroa portuguesa dinheiro para construir um novo prédio onde estava um conjunto de barracas e casebres resultado da caridade de devotos de São Lázaro para recolher “pobres da terra” ou “dos navios da África”.

Esta referência é para nos lembrar que escravidão foi algo muito mais violento do que as nossas impressões ligeiras, inclusive organizada como um poderoso e eficiente sistema econômico. Dá para imaginar o estado de saúde de quem fazia uma travessia penosa, durante meses, confinado em um porão de navio e submetido a uma dieta escassa. Escabiose, por exemplo, devia ser uma doença corriqueira.  Possivelmente,  o lazareto era um destino dos que chegavam em péssimas condições para ser ofertados ao mercado. Isso se tivessem ainda alguma chance de sobrevivência ou de um despertar da caridade de gente como os que fundaram o local .

Seguindo a tradição relatada em várias passagens bíblicas sobre os locais destinados aos leprosos, o lazareto ficava muito longe  do centro sócio econômico de Salvador. Até hoje não é  fácil chegar à igreja que fica no final da Estrada de  São Lázaro ao fundo do campus da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal da Bahia (FFCH-Ufba).

São raros os ônibus que entram na Estrada de São Lázaro. A maioria circula na  Rua Caetano Moura de onde é necessário percorrer mais  1,2 quilômetros para chegar ao largo onde está o templo. Em dias de sol é um sufoco. Mas a festa, mesmo periférica, tem um público surpreendente. Em outros tempos, com a lavagem das escadarias da igreja, a visibilidade para a festa era maior.  Hoje a lavagem acontece ano sim, outros não , por iniciativa da associação de moradores local. Mesmo assim tem devoto que não dispensa uma cervejinha e o cardápio básico das festas de largo da capital baiana- feijoada, sarapatel e rabada- nas poucas, mas resistentes, barracas montadas para a festa.

Foto: Cleidiana Ramos

Encontros

Pelos dados relacionados à presença da igreja em 1737, já estavam em Salvador, devidamente instalados, africanos vindos de Angola e Congo, que deixaram o legado do culto a Kavungo. Este grupo étnico fundou a Venerável Ordem de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos às Portas do Carmo, felizmente ainda em uma crescente e produtiva atividade. Também estavam na cidade os chamados jejes, vindos do Daomé, onde era forte o culto a Sakpata e Azoany, os voduns que, assim como o angola Kavungo, detém o controle sobre os mistérios da morte e da vida, da saúde e da doença, especialmente as que acometem a pele e se desenvolvem rapidamente e ameaçadoramente como a varíola. Logo estaraim entre eles os  nagôs com sua reverência a divindades semelhantes: Omolu e Obaluaê, muitas vezes entendidos como um só e em outras separados.

E tornou-se cada vez mais diverso o entorno do culto ao católico Lázaro  . Possivelmente em seu latim, incompreensível para a maioria dos devotos, os padres se referiam ao Lázaro de Betânia. Este está no cânone católico dos santos, com festa em 17 de dezembro. É o homem que Jesus ressuscitou, seu amigo querido a ponto de ter chorado quando soube da morte. A narrativa pormenorizada de como ocorreu a ressurreição de Lázaro está no Evangelho de São João, capítulo 11, versículos 33 a 35 e 38 a 44.

Mas para o povo de fé e devoções tão diferentes, o Lázaro que trazia semelhanças e aproximações referenciais era outro. Este aparece no evangelho de Lucas, no capítulo 16, versículos de 19 a 31. É o personagem de uma parábola, o recurso didático adotado por Jesus para ensinar. As parábolas são pequenas histórias sempre finalizadas com uma lição para orientar o que ele considerava a prática moral ideal. O trecho apontado começa com as seguintes informações:

‘Havia um homem rico que se vestia de púrpura e linho fino, e dava banquete todos os dias. E um pobre, chamado Lázaro, cheio de feridas, que estava caído à porta do rico. Ele queria matar a fome com as sobras que caíam da mesa do rico. E ainda vinham os cachorros lamber-lhe as feridas”.

No desenrolar da história, os dois morrem. Lázaro vai para o seio de Abraão e o rico para um lugar cheio de tormentos e que mais tarde os cristãos vão transformar em seu inferno com descrições cada vez mais terríveis. O diálogo que se segue é entre Abraão e o rico onde o primeiro aponta que agora Lázaro merece o conforto porque sofreu demais em vida.  Jesus queria mostrar como a riqueza aliena a ponto de não se dividir comida tão abundante com um doente que tem o corpo coberto de feridas. Lázaro era, para o homem rico, um invisível, alguém completamente descartável, passível de ser esquecido, como a maioria de nós considera a população dos presídios, afinal, justificamos, são criminosos.  O rico só viu Lázaro com os olhos da eternidade e ainda assim porque queria o seu agora privilégio, só possível para alguém, como Lázaro, em uma outra vida e fora da terra.

Diversidade

Pois foi este o Lázaro, e não o de Betânia, que ganhou os corações dos devotos. Neste eles reconheceram tantas das suas dores: abandono em meio às chagas da doença e da velhice, possivelmente da escravidão ainda em curso ou recém vencida.  É  gente adequada a essas narrativas verbalizadas ou adivinhadas na contemplação dos seus rostos e corpos que lota as missas realizadas ao longo do último domingo de janeiro ou nas segundas-feiras, dia que se convencionou para a sua homenagem exatamente pela proximidade com as divindades de origem africana – Kavungo, Azoany, Sakpata, Omolu e Obaluaê – que o candomblé absorveu e cultua.

Além do poder sobre a doença e também sobre a morte- um mito nagô diz que Omolu ainda criança acorrentou Iku, a temível ceifadora da vida para espanto de todos os outros orixás- esses deuses conhecem a dor dos seus filhos. Eles as absorveram em seu corpo divino e por isso se apresentam, na terra, protegidos com vestes tecidas na chamada palha da costa. Em outras narrativas a proteção é porque são donos de uma beleza que de tão potente cega e machuca. Mas, se avaliarmos o que se diz sobre estas divindades, elas estão sempre ali para acolher, proteger e defender do sofrimento, ou seja, oferecendo amparo, afinal quem se aproxima de alguém com chagas ou infecções que devoram a pele?

Pior ainda em relação aos custodiados de Roraima. Quem ia se aproximar dos atingidos pela chaga social do crime? E assim eles ficaram lá: 16 em uma cela que cabem três, segundo uma das reportagens que li. Em outra descrevia-se que água de esgoto invadia os lugares onde estavam amontoados. Numa reportagem, a mulher  (são sempre as mulheres que não largam o parente ou o companheiro, especialmente na doença, na prisão e na morte) contava que o  irmão  levou quatro meses com a mesma roupa. E assim, esses homens, os leprosos do presente estavam apodrecendo em vida, literalmente.  As imagens que circularam são chocantes. As feridas invadiram de forma profunda e para além da pele; alguns não andavam devido ao inchaço.

A história só ganhou projeção após denúncia da Comissão de Direitos Humanos da OAB de Roraima. O estado distribuiu nota para desmentir o que tornava a história ainda pior: não era uma bactéria desconhecida em ação, mas o encontro de doenças com destaque para a sarna, como se isso já não fosse suficientemente escandaloso. O estado é o guardião dessas pessoas,  que passaram pelos seus crivos disciplinadores para ser ressocializadas. Mas esse princípio perdeu o norte em um sistema de justiça que tem mais justiceiros do que mediadores na berlinda entre o bem estar coletivo e a transgressão de um indivíduo.

Eis que está aí a religiosidade popular para ensinar. O povo entendeu que é possível, ao menos por uma via simbólica, dar uma lição de que existe esperança mesmo para aqueles que ninguém quer por perto. São Lázaro tem uma devoção fortíssima no Brasil e em países como Cuba, especialmente por conta da interação com os deuses africanos em um relação que vai muito além da explicação simplista de sincretismo no senso comum. Não é esconder um no outro, mas entrelaçar, tecer tantos fios que as ortodoxias ficam impotentes . Tanto que a Igreja Católica, que empreendeu uma ampla reforma na década de 1970 para invisibilizar os santos com biografias em que a historicidade estava comprometida, mantém o culto a Lázaro, que, diferentemente dos outros, não viveu uma vida terrena, mas a condição de uma alegoria. Vale ressaltar que esta teimosa visibilidade de São Lázaro tem muito a ver com a sua interrelação com as divindades africanas.  Tanto que na porta da igreja, após as escadas- pois a sabedoria popular coloca limites ao que é de cada um-  oferece-se um rito de purificação:  o banho de pipoca, chamada de “a flor do Velho”. É a licença também em relação a um candomblé ortodoxo, pois os terreiros não fazem seus ritos de purificação em meio a tantos olhares.

Com a pipoca massageando tórax, pernas e braços, na devoção popular, leva-se embora a energia negativa que afeta o corpo  e a alma, afinal nas filosofias afro-brasileiras os dois formam uma unidade e não a dualidade cristã do “se o olho te leva a pecar, arranque-o, pois é melhor perdê-lo à alma”.  Nestes ritos, não basta rezar. É necessário também apelar para a materialidade de um banho ou de um preparado de ervas, que devem ser manipuladas apenas por quem entende, afinal a mesma “folha que salva, mata”. Ciência, sabedoria e poder devidamente conjugados.

O culto a São Lázaro tem demonstrado força e apoio popular para persistir  a qualquer investida de purificação dos modelos de celebração ou de quem deseja que a fé seja algo bem cartesiano encaixada em determinados parâmetros. Difícil e é o que faz a beleza da festa. Estas lições tenho tentado apreender no âmbito da antropologia a partir de reflexões muito pertinentes como o que a festa faz fazer das professoras Fátima Tavares e Francesca Bassi.

A festa de São Lázaro faz aflorar a esperança, e muitas vezes alívio, de idosos, doentes de escabiose, psoríase, artrite, artrose e tantas doenças que não apenas castigam o corpo mas também a alma. Ao menos por um dia eles gozam do amparo e conforto em meio aos vivas a São Lázaro, na saudação manifesta ou silenciosa também a  Kavungo, Azoany, Sakpata, Omolu e Obaluaê.  Pode também caber uma homenagem aos que enxergam, para além das comodidades, um corpo de lázaro mesmo nos habitantes de presídios como o de Roraima.

Para conferir imagens sobre a Festa de São Lázaro, na década de 1980, pertencentes ao Centro de Documentação do Jornal A Tarde consulte o link: http://espelhodefesta.atarde.com.br/festas/sao-lazaro-1980 

Conheça outros colunistas e suas opiniões!

Colunista NINJA

Memória, verdade e justiça

FODA

Qual a relação entre a expressão de gênero e a violência no Carnaval?

Márcio Santilli

Guerras e polarização política bloqueiam avanços na conferência do clima

Colunista NINJA

Vitória de Milei: é preciso compor uma nova canção

Márcio Santilli

Ponto de não retorno

Andréia de Jesus

PEC das drogas aprofunda racismo e violência contra juventude negra

Márcio Santilli

Através do Equador

XEPA

Cozinhar ou não cozinhar: eis a questão?!

Mônica Francisco

O Caso Marielle Franco caminha para revelar à sociedade a face do Estado Miliciano

Colunista NINJA

A ‘água boa’ da qual Mato Grosso e Brasil dependem

Ivana Bentes

O gosto do vivo e as vidas marrons no filme “A paixão segundo G.H.”

Márcio Santilli

Agência nacional de resolução fundiária

Márcio Santilli

Mineradora estrangeira força a barra com o povo indígena Mura

Jade Beatriz

Combater o Cyberbullyng: esforços coletivos

Casa NINJA Amazônia

O Fogo e a Raiz: Mulheres indígenas na linha de frente do resgate das culturas ancestrais