A cada vez que leio um texto de João José Reis reforço a minha certeza de que a historiografia mais tem a ver com o presente do que com o passado. Esta ciência, na verdade, apresenta elementos que já ocorreram para que consigamos perceber com mais propriedade onde chegamos. E o historiador em questão domina essa arte com maestria. Da mesma forma que conseguiu contar a revolta malê, na obra Rebelião Escrava no Brasil, com detalhes levantados em uma minuciosa pesquisa, João Reis, em Ganhadores, apresenta o poder de articulação de cativos e libertos para se imporem diante de uma exacerbação da violência e exploração que os acometia em uma greve que fez a Salvador de 1857 sentir o quanto era refém dessa mão-de-obra.

(…) Escravizados e libertos, todos eles africanos, assim protestaram contra a obrigação de registro junto à Câmara Municipal, o pagamento de um imposto profissional e uma série de medidas de controle policial assaz antipatizadas pelos ganhadores. O movimento recebeu adesão bem maior do que a Revolta dos Malês, mas foi pacífico (…)”, narra um dos trechos do livro.

Os protagonistas do movimento eram mulheres e homens chamados ganhadeiras ou ganhadores, que trabalhavam na rua. Podiam ser escravizados ou libertos, negros e africanos em sua maioria. Os homens se ocupavam, geralmente, no transporte de pessoas nas chamadas cadeiras de arruar e as mulheres vendiam as mais diversas mercadorias. O sistema de ganho a que estavam submetidos permitia um acordo com o senhor para ficar com uma parte da renda, o que lhes permitia poupar e também entrar nas redes de aplicação financeira organizadas por instituições negras, como as irmandades católicas, para conquistar a sonhada alforria.

Além de apresentar os detalhes do movimento, João Reis apresenta um contexto que mostra as relações entre escravos e libertos no trabalho, mas também nos momentos de lazer. É uma linha preciosa afinal durante muito tempo os estudos historiográficos ignoraram aspectos da afetividade de cativos e libertos, suas relações familiares e de amizades. Essas últimas, revelam um poder de articulação política impressionante nas ligações via o Atlântico como mostram as pesquisas sobre as redes do candomblé baiano.

Reação

A lição principal de Ganhadores é que oprimidos não são massivamente alienados das causas e consequências dos seus sofrimentos. São, muitas vezes, vítimas da sobrecarga das atribulações de sobrevivência e do esforço para continuar existindo em uma situação que é de morte e anestesia, outras esferas de luta. Mas em alguns momentos chega-se a um extremo que faz com que a indignação exploda. Quando esse não mais aguentar vêm dos estratos fora das estruturas de poder, o pânico é tão extenso que se procura as mais diversas formas de apagar seus traços para o futuro. Foi assim com a Revolta dos Malês (1835), Canudos (1896-1897) e também com Pau de Colher, o episódio até então único – e esperemos que continue assim – em que a Força Aérea Brasileira (FAB) bombardeou, na década de 1930, um grupo de 400 civis em Casa Nova, município baiano localizado no médio São Francisco. Mas aí estão as ciências sociais, como a história e a antropologia, para resgatar esses levantes dos oprimidos.

À medida que se avança na leitura de Ganhadores percebemos que os lances narrativos não estão distantes do nosso cotidiano. Quando João Reis aponta as articulações e agruras da população da Salvador da metade do século XIX, especialmente africanos, trabalhando sem descanso pelas ruas da cidade e lançando mão de seus próprios saberes – como um jogo de tabuleiro no auxílio para fazer as contas das atividades – é fácil encontrar as semelhanças com os ambulantes que tomaram as calçadas da Avenida Sete e demais localidades do Centro da cidade.

Os protagonistas do livro vendiam ou carregavam nos ombros gente e mercadorias porque eram obrigados via um acerto extraoficial do sistema escravocrata: precisavam conseguir renda para senhores que dependiam do trabalho de seus escravos para comer porque não eram barões do açúcar. Recorriam ao expediente de lhes dar uma certa liberdade para circular pelas ruas e até morar fora de seu controle. Isso era preferível a ir desenvolver um ofício, afinal trabalho era coisa de “não gente”.

Como aquelas mulheres e homens do ganho no passado, os ambulantes de agora exercem a venda informal porque não têm mais ao que recorrer. Não têm emprego e nem perspectiva de conseguir um. Não há mais canteiro de obra da construção civil capaz de absorver quem não tem uma especialização. Para as mulheres, herdeiras dos ofícios das ganhadeiras, como as vendedoras de acarajé e mingau, vencer a intricada burocracia para conseguir uma licença não é fácil sem uma reserva financeira.

No ano passado, participei da banca examinadora da dissertação de mestrado de Alice Pinheiro Teixeira, na Escola de Nutrição da Ufba. O doutor em sociologia e professor Ericivaldo Veiga, um dos examinadores e dono de uma extrema sensibilidade e conhecimento sobre Salvador, observou que há uma proliferação da venda de temperos e legumes ao longo das ruas do centro da cidade. De acordo com ele esse é um dos sintomas mais agudos de falta de emprego e renda. Por quê? Vender este tipo de alimento é o recurso de quem já não tem nem dinheiro para comprar o saco de balas para comercializar no ônibus e o jeito é apelar para uma mercadoria que só tem um dia de vida útil e por isso pode ser comprada em pequena quantidade.

Desigualdade na folia

No Carnaval esse quadro ganhou uma nitidez ainda mais desoladora. Embora a cobertura assistencialista de algumas plataformas de mídia locais desvie o foco, não é possível que cheguemos ao século XXI assistindo àquele show de desumanidade em vários sentidos. O horror começa no desespero de pessoas que passam dias pernoitando em filas para conseguir licença. O esforço é para ter o direito a ganhar um cantinho no asfalto para fixar um isopor da marca de cerveja oficial da festa sob a ameaça constante de fiscais buscando encontrar irregularidades para apreender a mercadoria.

Com a folia em andamento, famílias inteiras se revezam nas moradias improvisadas – lonas e outros recursos – nas praças próximas aos circuitos. Em meio ao desfile dos blocos de “gente bonita”, da disputa de artistas para emplacar a “música do Carnaval”, de pipoca animada ou cult, da performance mais lacradora, corpos negros apertam-se nas estratégias para conseguir vender mais; tem ainda os que vão catando as latinhas vazias da cerveja exclusiva da festa. Meninas e meninos ao invés de exibir a fantasia do personagem de cinema preferido auxiliam nesse exaustivo trabalho.

É deprimente assistir a uma cena dessas e continuar a curtir o Carnaval, mas festa não é um recorte temporal na realidade. Embora esperemos esquecer nosso calvário diário até a Quarta-feira de Cinzas, infelizmente, nenhuma das nossas dores diárias dá descanso, especialmente na cidade que alardeia e comemora nas peças da promoção do poder público ser a “mais negra do país”, mas não conta que o racismo dilacera e mancha tudo que as mais variadas civilizações africanas nos legaram. A polícia, majoritariamente formada por soldados pretos, abre seu caminho de patrulha na força; “cordeiros”, uma atividade inventada pelo carnaval-mercado, esgotam energias para manter o bloco como espaço privilegiado. A remuneração é baixa, os equipamentos de segurança aparecem apenas quando as mídias fazem pressão e vão levando no seu vaivém os corpos dos ambulantes que tentam a todo custo driblar as regras de segurança para conseguir vender aos foliões privilegiados. E no meio desse balé explícito da desigualdade étnico-racial baiana passeiam as cortes das estrelas e astros que se proclamam reis, rainhas, príncipes e princesas usando e abusando de clichês. E lá se vai a “capital da alegria” sassaricando em trilha sonora exorbitante seu passado e seu presente entrelaçados de cidade erguida sobre algo tão brutal como a escravidão.

Ganhadores, portanto, tem o mérito de mostrar quanto o presente é tão próximo do passado. A luta pela existência de quem não está na Casa Grande nem no quilombo conscientizado não dá folga, nem trégua. Esses ganhadores de agora carregam no cotidiano suas dores e dramas que nem sempre conseguimos enxergar ou traduzir por mais empenhados que estejamos nas disputas narrativas, especialmente as que ocorrem nas redes sociais. Mas aí está a historiografia como a de João Reis para lançar luz e uma ponta da esperança de que um levante se forme em meio ao silêncio indignado. Esperemos.

Serviço:
Ganhadores – A greve negra de 1857 na Bahia
Autor: João José Reis
Editora: Companhia das Letras.
Disponível em cópia impressa e ebook.

 

 

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